Diário de um Cucaracha – Henfil
>> sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
HENFIL. Diário de um Cucaracha. Rio de Janeiro: Editora
Record, 1983. 276p.
Diário de um Cucaracha foi
publicado em 1976 e conta a experiência do jornalista, cartunista e escritor Henrique
de Souza Filho, mais conhecido como Henfil, em Nova York entre os anos de 1973
e 1975. Podemos classificar a obra como pertencente ao gênero “memórias”, que
tem um lugar especial no meu coração. O livro é uma organização de cartas (e
uma entrevista dada ao periódico Pasquim em 1973) enviadas por Henfil para sua
família e amigos durante o período. Apesar de não se tratar de um material
escrito com um livro especificamente em mente, as cartas seguem uma ordem
cronológica e juntas conseguem mostrar um contexto da vida do autor naquele
momento, trazendo especialmente suas razões para sair do Brasil naquele momento
e a dificuldade em se adaptar em um novo país.
Eu não conhecia muito sobre a
vida e obra de Henfil e esse foi um excelente livro para isso. Há algo muito
intimista em ler sobre a vida de outra pessoa escrita por ela mesma, e há algo
quase com um tom proibido em ler a correspondência alheia. Posso chamar o
sentimento que me atraiu ao livro como uma “fofoca saudável e edificante”, atrelada
ao meu amor pelo gênero. Acho incrível ler memórias, pois acredito que todo
mundo tem uma história. Bem contada, tudo fica interessante, e é em livros
assim que descobrimos situações semelhantes, comparamos experiências e
vivências e crescemos tanto como leitores quanto pessoas. Essa obra
inicialmente me atraiu pela força das circunstâncias: ela estava aqui em casa e
era do gênero, logo aproveitei a oportunidade. Encontrei um livro muito
interessante que aguçou a minha curiosidade e satisfez a minha necessidade em
conhecer mais sobre o autor, sem necessariamente precisar pegar informações
extras na internet para isso. O resultado foi uma leitura prazerosa – apesar da
completa aversão pela capa visceral bem típica das escolhas editoriais dos anos
1980 – que me deu uma visão muito boa sobre quem era Henfil, tudo isso ao mesmo
tempo em que satisfazia a minha alma fofoqueira ao ler suas cartas para outras
pessoas.
Começamos o livro com uma
carta de 3 de outubro de 1973, com Henfil avisando para a mãe que chegou em
Nova York apesar do medo de voar, dizendo estar “ainda grogue do Mandrix que
tomei para desmaiar e aguentar o medão enorme de avião” (p. 11). Já nas
primeiras correspondências eu comecei a pensar em como cartas precisam de
criatividade e dedicação. Hoje em dia trocamos algumas mensagens curtas ou já
partimos direto para o áudio. Isso me fez refletir sobre as dificuldades de
comunicação na década, especialmente no caso de Henfil, que ainda publicava em
jornais e revistas no Brasil e constantemente enviava seus desenhos e precisava
ler os materiais aqui publicados. Cartas eram a solução para notícias e
comunicar desejos, o que dá a essas viagens uma excelente oportunidade de
registro. Palmas para o autor, que demonstra uma excelente capacidade de
catalogar e editar seu material pessoal, ao mesmo tempo que consegue nos
mostrar as características de sua escrita: intimista, engraçada, direta e um pouco
sádica. Eu gostei.
A ordem cronológica nos
permite ver a evolução do autor e ter noção de todas as dificuldades enfrentadas
na viagem. O primeiro aspecto era a quase necessidade de sair do país, dado o
aumento da censura. Isso desencadeou uma vontade de conhecer e trabalhar no
mercado editorial estadunidense, mas não seus percalços: encontrou um ramo de
difícil adesão e com outro tipo de censura, uma dificuldade de falar sobre
temas considerados “imorais”. Isso o leva a receber inúmeras críticas e a
inusitada classificação como “sick”, sobre o que ele reflete que “a tradução
literal de ‘sick’ é doente, certo? Mas é mais. Você pode chamar alguém de
imoral; pornográfico, escatológico, sádico e até fascista. Mas ‘sick’ é algo
especial. É tudo isto junto. É neurótico, desajustado. Um mundo” (trecho de
carta escrita em 22/09/1974 p. 209).
O autor também fala das suas
dificuldades com a língua bem como a xenofobia escancarada de suas origens
latinas. Isso é evidenciado em passagens que visita o hospital (algo constante,
devido a sua hemofilia), como por exemplo ao relatar a razão do título da obra,
o termo pejorativo “Cucaracha” dado aos porto-riquenhos que habitam na cidade. Sobre
isso, ele descreve uma passagem específica: “sou o único paciente
estrangeiro e uma fisioterapeuta já me fez sentir isto durante uma semana.
Quando soube que eu era do Brasil, passou a cantar debochado e revirando os
olhinhos: ‘La Cucaracha... La cucarááácha...’” (trecho de carta escrita em 19/11/1973
p. 29).
Sobre o seu tratamento médico, temos a parte que eu mais gostei do livro e que me deixou ávida para mais detalhes e informações: a hemofilia e as dificuldades que os hemofílicos enfrentam. Na entrevista dada ao Pasquim em 1973, o autor relata que a ida para os Estados Unidos em muito era devido à possibilidade de tratamento mais avançado, pois “lá eu vou pegar clínicas que têm condições do hemofílico” (p. 44). Com o tempo, descobrimos que a realidade do sistema de saúde americano é outra e que muitas vezes a “síndrome do patinho feio” que o brasileiro possui pode afetar a nossa capacidade de discernimento e ver as vantagens de um sistema público gratuito de saúde. Eu gostaria de ter lido mais sobre os detalhes do tratamento e das experiências nos hospitais de Nova York, mas ao mesmo tempo entendo que é um tema muito íntimo para se expor ou que gera muitas preocupações para ser retratado tão detalhadamente em cartas a amigos.
Também verificamos outras
situações comuns na vida de intercambistas e imigrantes. Uma delas (talvez a
mais aflitiva) é a dificuldade de adaptação à alimentação local que desencadeia
saudades de alimentos muito específicos. Isso trouxe algumas passagens
engraçadas, e destaco essa:
Henfil viveu a infância e juventude em Belo Horizonte, então diversos de seus pedidos e lembranças são dessa cidade, onde nasci e cresci. Adorei as referências a padarias, restaurantes, costumes típicos mineiros, bairros, escolas, e consigo entender a necessidade de um Mate-Couro. A padaria Ouro-Pretana não conheço, alguém dá notícia? Enfim, cada um com sua dificuldade. Eu lembro que quando passei 6 meses na Inglaterra senti uma saudade doentia de arroz com feijão e quando voltei passei uma semana comendo isso nas três refeições, incluindo no café da manhã. Cada um com seus desejos e suas manias.
Outro aspecto importante do
livro é a dificuldade do autor com a língua. Ele chegou nos EUA sem falar uma
palavra de inglês, e ia se virando com a ajuda de brasileiros, arriscando o “portunhol”
e com mímicas. A situação era mais complicada quando tinha que ir à emergência
do hospital, mas ele foi se virando e melhorou bastante durante o período das
cartas. Sobre isso, ele escreve:
Como já mencionei, fiquei com vontade de ler mais sobre as experiências nos hospitais, de longe a melhor parte do livro. Também achei desnecessária a entrevista ao Pasquim no meio do livro. É demasiadamente longa e quebra um ritmo, sem muita razão de estar ali. No geral, a minha sensação ao final do livro é positiva, pois acredito conhecer um pouco mais sobre quem foi Henfil. Um homem batalhador, cheio de seu “jeitinho brasileiro” para resolver as situações. Um homem idealizador e sonhador, mas que corria atrás. Uma figura interessantíssima com muita história para contar. Acho que essas são as características de um bom livro de memórias, aquele que saímos com a sensação de conhecer um pouco mais da pessoa atrás daquelas palavras. Nisso, estou satisfeita com a leitura e indico para aqueles curiosos sobre a vida de brasileiros nos EUA ou querendo mais detalhes sobre o trabalho jornalístico nas dificuldades dos anos 1970.
Adicione ao Skoob!
“New York, 05 de
outubro de 1973
Zéduardo, mano velho
de guerra!
(...)
Você me pergunta
pelo curso de inglês no Berlitz. De fato, foi loucura minha sair daí sem saber
falar nenhuma palavra de inglês. Agora me arrependo de nunca ter prestado a
mínima atenção nas aulas de inglês no Colégio Arnaldo, de BH. Mas com o joelho
nesta explosão, desde que cheguei do aeroporto ainda não saí de casa. E toca a
ler jornais do Brasil, porque o New York Times é grego. Só entendo as
fotografias. Dá um desespero, Zé, pensar que vou ter que um dia decifrar aquilo
tudo.
O cara com quem
divido o apartamento, Orlando Araújo Henriques, é mineiro de Belo Horizonte. Tá
quebrando o maior galho. Telefone toca e não atendo. Vou entender nada. Fica o
bicho tocando, tocando, que do outro lado vão falar inglês. Quando o Orlando
chega do Trade Bureau é que se fica sabendo quem telefona e por quê.” (p. 11-13)
Sobre o seu tratamento médico, temos a parte que eu mais gostei do livro e que me deixou ávida para mais detalhes e informações: a hemofilia e as dificuldades que os hemofílicos enfrentam. Na entrevista dada ao Pasquim em 1973, o autor relata que a ida para os Estados Unidos em muito era devido à possibilidade de tratamento mais avançado, pois “lá eu vou pegar clínicas que têm condições do hemofílico” (p. 44). Com o tempo, descobrimos que a realidade do sistema de saúde americano é outra e que muitas vezes a “síndrome do patinho feio” que o brasileiro possui pode afetar a nossa capacidade de discernimento e ver as vantagens de um sistema público gratuito de saúde. Eu gostaria de ter lido mais sobre os detalhes do tratamento e das experiências nos hospitais de Nova York, mas ao mesmo tempo entendo que é um tema muito íntimo para se expor ou que gera muitas preocupações para ser retratado tão detalhadamente em cartas a amigos.
“Mudando de assunto: se
você tiver portador, pelo amor de Deus, manda para mim: pão jaú da Padaria Ouro-Pretana
lá de Belzonte, pelo menos uma garrafa de Mate-Couro, farinha de mandioca,
rapadura, mate Leão (ai, que vontade!) e (isto mais urgente) polvilho antiséptico
Granado, que é o único desodorante que não dá cheiro maior que o anterior.
Pés-de-moleque, ô mano, manda pelo menos um. Ah! Isto é simples: preciso
urgente de uma caixinha (ou duas?) de fósforos Pinheiro ou Beija-Flor. Deixa eu
explicar, homem. Não é fanatismo, não. É que aqui não tem caixas de fósforos de
madeirinha, é de papelão. E aí, tragédia, não dá para batucar”. (trecho de
carta escrita em 11/11/1973, p. 27-28).
Henfil viveu a infância e juventude em Belo Horizonte, então diversos de seus pedidos e lembranças são dessa cidade, onde nasci e cresci. Adorei as referências a padarias, restaurantes, costumes típicos mineiros, bairros, escolas, e consigo entender a necessidade de um Mate-Couro. A padaria Ouro-Pretana não conheço, alguém dá notícia? Enfim, cada um com sua dificuldade. Eu lembro que quando passei 6 meses na Inglaterra senti uma saudade doentia de arroz com feijão e quando voltei passei uma semana comendo isso nas três refeições, incluindo no café da manhã. Cada um com seus desejos e suas manias.
“Você me pergunta pelo
curso de inglês no Berlitz. De fato, foi loucura minha sair daí sem saber falar
nenhuma palavra de inglês. Agora me arrependo de nunca ter prestado a mínima
atenção nas aulas de inglês no Colégio Arnaldo, de BH. Mas com o joelho nesta
explosão, desde que cheguei do aeroporto ainda não saí de casa. E toca a ler
jornais do Brasil, porque o New York Times é grego. Só entendo as fotografias.
Dá um desespero, Zé, pensar que vou ter que um dia decifrar aquilo tudo”. (trecho
de carta escrita em 05/10/1973, p. 13).
Como já mencionei, fiquei com vontade de ler mais sobre as experiências nos hospitais, de longe a melhor parte do livro. Também achei desnecessária a entrevista ao Pasquim no meio do livro. É demasiadamente longa e quebra um ritmo, sem muita razão de estar ali. No geral, a minha sensação ao final do livro é positiva, pois acredito conhecer um pouco mais sobre quem foi Henfil. Um homem batalhador, cheio de seu “jeitinho brasileiro” para resolver as situações. Um homem idealizador e sonhador, mas que corria atrás. Uma figura interessantíssima com muita história para contar. Acho que essas são as características de um bom livro de memórias, aquele que saímos com a sensação de conhecer um pouco mais da pessoa atrás daquelas palavras. Nisso, estou satisfeita com a leitura e indico para aqueles curiosos sobre a vida de brasileiros nos EUA ou querendo mais detalhes sobre o trabalho jornalístico nas dificuldades dos anos 1970.
Compre na Amazon: Diário De Um Cucaracha
Avaliação (1 a 5):