Menina Má – William March

>>  sexta-feira, 24 de setembro de 2021

MARCH, William. Menina Má. Rio de Janeiro: Editora Darkside Books, 2016. 272p. Título original: The bad seed.

“A diretora ficou em silêncio alguns momentos e então falou que em vários aspectos o psiquiatra considerava Rhoda a criança mais precoce que já vira; seu jeito calculista, astuto e maduro era, de fato, notável; ela não tinha nenhuma das culpas e dos medos comuns da infância; e, era claro, não tinha qualquer capacidade de afeto, preocupando-se somente consigo mesma. Mas talvez o traço mais notável nela fosse sua inesgotável cobiça. Ela era uma fascinante espécie de animalzinho que não aceitava ser domado, que não aceitava se ajustar aos padrões convencionais...” p. 59 


Como vocês devem saber, temos aqui no blog o projeto da Leitura Coletiva, onde lemos clássicos da literatura mundial com metas curtas e conversando descontraidamente com outros participantes, compartilhando impressões, ideias e expectativas. E que leitura foi essa, bastante diferente de tudo o que passou por aqui até agora! O escolhido para a 10ª Leitura Coletiva do blog Viagem Literária foi o livro MENINA MÁ, de William March. Publicado em 1954 para um imediato sucesso editorial, a obra deste não tão celebrado autor americano ajudou a definir o gênero do terror, apesar de estar mais para um bom thriller psicológico. A influência do livro no gênero foi gritante, e suas adaptações para o teatro e cinema foram premiadas e abriram espaço para novas produções ao mostrar que pode ser muito interessante acompanhar histórias envolvendo psicopatas, mesmo quando manifestados já na infância.

O livro conta a história de Rhoda Penmark, uma garotinha de 8 anos que mora com a mãe Christine e tecnicamente também com o pai Kenneth, que está sempre fora a trabalho. Rhoda é o orgulho da mãe e sempre encanta todos que a conhecem, mais notoriamente a melhor amiga de sua mãe, Monica Breedlove. A menina é um anjinho que quase beira a perfeição: arruma seu cabelo em perfeitas tranças loiras, sempre trajando vestidos arrumados e limpos, e usando um sapato com um detalhe que ela mesma idealizou, com uma sola de metal especialmente feita. Além disso, ela é uma filha perfeita, demonstrando carinho a mãe e jamais dando trabalho. Na escola, Rhoda era a favorita para ganhar o cobiçado prêmio de melhor caligrafia, que vem junto com uma linda medalha para se pregar no peito. Porém, após Claude Daigle, um de seus coleguinhas, vencer o prêmio, a menina começa a adotar alguns comportamentos que intrigam a mãe, que passa a questionar se sua filha é tão boazinha igual ela imaginava. 

“Como é estranho, pensou a sra. Penmark, o quanto a minha filha é admirada por pessoas mais velhas, enquanto as crianças de sua idade não a suportam.” p. 105

Esse livro surgiu na minha vida como aquele típico caso da capa que chama a atenção de um cliente na livraria. É realmente uma bela edição em capa dura da Darkside, que só seria melhor se constasse o nome e o autor do livro na capa. Na capa temos uma boneca dissecada para mostrar o seu interior, o que mostra o cerne da história: que “força” está dentro de Rhoda? Poderia o mal se manifestar já em uma criança? E, o que esse livro imensamente contribuiu para a literatura e também para o cinema, a figura do mal era agora uma mulher. 

Falar em 2021 de livros com protagonistas/antagonistas femininas parece uma conversa ultrapassada, mas é em Menina Má uma das primeiras vezes que um livro protagonizado por mulheres trata do tema da maldade. Claro, sempre tivemos histórias onde mulheres cometeram crimes, mas eles eram na esmagadora maioria crimes passionais, relacionando o ato criminoso a ciúmes, amor ou vingança amorosa. Eu desconheço uma história que trate da mulher como portadora da “semente do mal”, como o autor chama (e que é a tradução literal do título do livro), que tem comportamentos criminosos simplesmente porque tem essa disposição. Assim, aproveita também para introduzir o diálogo sobre a origem do mal: Natureza ou criação? Estaria ele dentro do corpo como uma força natural herdada da qual nem a criança nem a sociedade podem escapar? A maneira como a criança portadora da “semente do mal” interfere na manifestação de atos perversos? São temas polêmicos e que já evoluíram muito desde a publicação do livro, mas que mesmo assim fazem dessa obra uma excelente escolha para uma leitura compartilhada. 

O livro foi publicado na era de ouro da psicanálise e traz fortes elementos da ciência. A personagem Breedlove em algumas ocasiões relata sessões de terapia e serve como uma terceira parte ao analisar a situação e alguns comportamentos preocupantes de sua amiga, Christine. Mas nesse ponto da análise da mente nenhum personagem secundário é melhor de se analisar do que o asqueroso Leroy Jessup. Ele é tão corrompido quanto Rhoda, mas as suas manifestações ficam restritas ao pensamento ou pequenos atos de malandragem. Em Leroy temos uma pessoa negativa, que pensa o pior de todos e que sente prazer em incomodar. Em diversas ocasiões vemos seus pensamentos irem para o aspecto sexual, um tema “favorito” dos psicanalistas. Em Rhoda ele encontra quase uma companheira da perversão, e a interação entre os dois, embora irritante, trouxe uma interessante camada à história. 

Outro ponto que me agradou no livro é seu estilo de escrita. O texto é surpreendentemente atual, o que talvez seja mérito de sua tradução. A história flui bem, em capítulos curtos, linguagem acessível e algumas técnicas que tornam muito difícil parar a leitura. O autor escolhe terminar seus capítulos com frases de efeito que dão pequenos ensejos do que poderá acontecer, e servem para nos deixar intrigados com o que virá. Veja por exemplo o final do primeiro capítulo: 

“Mas nisto ele estava enganado, pois, conforme o tempo vai mostrar, Rhoda era perfeitamente capaz de trazer para a realidade coisas sobre as quais o zelador apenas fantasiava.” p. 39

A frase conclui a apresentação do personagem Leroy e introduz sua briga cão-e-gato com Rhoda. Ao concluir a cena, ele nos dá uma noção do que pode acontecer à menina, do que ainda não temos a menor dimensão. 

No mais, devo dizer que o livro está longe de ser perfeito. O gênero evoluiu muito – para melhor, diga-se de passagem. Se você espera um mistério daqueles bem bolados, saiba que não é o caso dessa história. E também está longe de ser do gênero “terror”, como algumas pessoas ainda o classificam. A história e a sua adaptação cinematográfica influenciaram inúmeros filmes de terror, mas não senti nenhum medo na leitura. E, convenhamos, se eu não senti medo, acho que vocês estão seguros, pois eu sou alguém que dorme de luz acesa após ler Harry Potter! Enfim, temos elementos do gênero terror, certamente, mas nenhum desses elementos levam a susto, aflição ou essas sensações a ele comumente associadas. Além disso, a história possui alguns furos e o final poderia ter sido desenvolvido de uma forma mais elaborada. Não estou dizendo que não gostei do final – na verdade, eu adorei – mas realmente acho que ele não foi bem executado. 

Procurem ler esse livro como uma pesquisa às origens de thrillers psicológicos e histórias de suspense com protagonistas femininas, como uma leitura prazerosa (apesar do tema) sobre as psicopatias e a natureza do ser humano. Procurem ler esse livro como uma análise do caráter e da personagem Rhoda Penmark que, honestamente, eu jamais vou esquecer. 

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