Os Miseráveis – Victor Hugo

>>  sexta-feira, 7 de maio de 2021



HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Martin Claret, 2020. 1511p. Título original: Les Miserábles.
 
Os Miseráveis foi a primeira escolha do Viagem Literária para a Leitura Coletiva. Foi com ele – e suas edições verdadeiramente artísticas – que incitou uma vontade de ler os clássicos em conjunto com outras pessoas que apreciam tanto quanto um texto aprovado pelo tribunal do tempo. Por ser um livro grande e muitas vezes lento, o fato de compartilhar a leitura com outras pessoas e metas curtas fez desse o livro ideal para começar os trabalhos. E que livro!
 
Talvez Os Miseráveis seja uma das grandes obras da literatura mundial. Seus personagens, seu enredo e sua narrativa tiveram inegável influência na cultura popular mundial, com diversas adaptações teatrais e cinematográficas. O Francês Victor Hugo publicou a obra em 1862 e nos apresentou à complexa e brutal França Revolucionária, misturando com doses precisas pobreza, orgulho, romance, sangue, luta, amor, ódio e vingança. Os personagens são marcantes e milimetricamente desenhados, tornando capaz descrever com precisão as mais obscuras facetas de sua personalidade, cada um representando uma faceta da população francesa que naquele momento histórico buscava seu lugar ao sol. Ler este livro e conversar sobre seus temas é mais que um exercício literário: é uma viagem ao imaginário histórico de um período extremamente marcante da História ocidental. E ouso dizer que é uma viagem sem passagem de volta ao fantástico e complexo mundo de Victor Hugo.
 
Como acontece com a maioria das pessoas em relação aos clássicos, conheci o livro na escola, em uma tentativa de trabalho interdisciplinar entre Literatura e História. A intenção era ótima, mas a realidade foi um pouco diferente: devido ao tamanho do livro (a edição que aqui coloco como referência, da editora Martin Claret, têm singelas 1.511 páginas), foi indicada uma versão com um pouco mais que 200 páginas, um resumo dos acontecimentos do livro. Creio que essa prática era uma forma comum de apresentar os calhamaços da literatura mundial para adolescentes. Ao mesmo tempo que respeita o enredo e principais acontecimentos da obra, acaba por “dilacerar” algumas escolhas narrativas, especialmente no que diz respeito ao estilo de escrita e escolha de apresentação da história. Confesso que preciso estudar um pouco melhor sobre a questão do ensino de literatura nas escolas, mas fica aqui a minha opinião baseada em experiências pessoais.
 
Talvez eu esteja sendo rígida demais, mas não acredito que 200 páginas seja o suficiente para repassar a grandiosidade da obra. Porém, devo confessar que o objetivo foi alcançado: me intrigou. A formiguinha da curiosidade me picou e eu fui na locadora de vídeos (saudades de um dos meus lugares favoritos na terra durante a década de 1990 e 2000, meu mundo encantado de inúmeras histórias e possibilidades), onde encontrei uma adaptação da obra. Prometo que não assisti pensando em ignorar o livro indicado e apenas conhecer a história para fazer as provas e trabalhos (mas muitas pessoas fizeram isso, deduro mesmo!). Algo em Jean Valjean me cativou, desde as primeiras páginas em que ele aparece. Acho que é a história do perseguido que consegue sucesso apesar de todas as circunstâncias serem contrárias a isso. Ele representa a esperança, mas o fato de ele jamais ter esquecido aqueles que o fizeram mal o faz humano, e um personagem extremamente relacionável. O filme não me conquistou, mas me fez tomar uma decisão: eu precisava ler o livro inteiro. Sempre com um livro no rosto, nunca tive medo de tamanho de livros, mas confesso que era um grande inconveniente carrega-lo na mochila escolar já bem cheia. Resolvi então ler durante os fins de semanas, e após sucessivas multas por atraso na biblioteca da escola, ganhei um presente de minha mãe que guardo com carinho até hoje: uma edição especial de colecionador da obra, que por si só é uma obra de arte!
 
Pronto! O contexto está pronto e eu estava ali com tudo o que precisava para me deliciar: uma curiosidade atiçada, um crescente interesse pela história da França (alguns anos depois eu viria a cursar História na UFMG) e uma edição que dava gosto de folear e ler. O resultado foi um livro que marcou minha adolescência, redefiniu a maneira como eu julgaria consequentes contadores de história e chegou bastante perto do que eu considerava “um livro perfeito”. Em 2020, anos depois dessa experiência, me vi diante da oportunidade de reler a obra e reavaliar após toda uma vida. Foi uma escolha difícil. Mas antes de falar dela, vamos para a história, que a maioria de vocês já deve conhecer, mas por favor não me abandonem agora!
 
A obra contém vários enredos paralelos, mas o fio condutor é a história do ex-presidiário Jean Valjean, que se torna uma um grande benevolente de Paris, mas não consegue escapar de seu passado criminoso. O livro é dividido em cinco volumes, cada volume dividido em livros e subdividido em capítulos. Como os capítulos são curtos, facilita a divisão da leitura (especialmente nos moldes da nossa Leitura Coletiva) e é uma maneira inteligente de manter o leitor engajado e não desanimado diante de mais de mil páginas.
 
A história começa em 1815 em Digne, quando o camponês Jean Valjean, recém-libertado de 19 anos de prisão no Bagne de Toulon, cinco por roubar pão para sua irmã viúva e sua família, que sofriam com a pobreza e a fome, e mais quatorze por inúmeras tentativas de fuga, é rejeitado por estalajadeiros porque seu passaporte amarelo o marca como um ex-presidiário. Infelizmente, esse ciclo vicioso era muito comum entre os homens atingidos pela pobreza nos dias anteriores à Revolução Francesa. Os desempregados recorriam ao crime como a última e única forma de sobrevivência. As prisões estavam cheias de Valjeans: pessoas miseráveis, filhos de uma sociedade elitista e estática, que punia ao invés de acolher, muitas vezes injustamente. Além disso, não havia a possibilidade de “redenção pelo trabalho”, pois ao serem finalmente libertados de penas incrivelmente longas e desproporcionais ao crime cometido, eram novamente condenados pela sociedade, marcados pelo status de “ex presidiário” e impedidos de encontrar trabalho. A ideia é nos introduzir a uma sociedade regida por um sistema de justiça criminal corrupto que falha em disciplinar os verdadeiros criminosos enquanto converte pessoas essencialmente boas em charlatões experientes. Mas essa sina não cai somente sobre os homens. A condição da miséria também atinge mulheres, e na primeira parte somos apresentadas a Fantine, uma personificação do cruel destino das mulheres pobres.
 
Fantine era uma jovem mulher que sofre com diversos infortúnios durante uma vida tragicamente curta. Ela nos é apresentada levando uma vida monótona com o homem que ela supõe ser seu amante, um estudante rico e despreocupado que nunca valorizou esse relacionamento, e acaba por a abandonar em um albergue com frieza e desapego. Sozinha e grávida, Fantine não tem outra escolha a não ser procurar qualquer meio disponível para se sustentar e a seu bebê. Ela consegue um emprego na fábrica por alguns anos, mas foi demitida abruptamente quando se espalhou a notícia sobre sua filha ilegítima, Cosette, então com três anos. Sem fonte de renda, as duas afundam cada vez mais na miséria, até que Fantine toma a decisão de entregar Cosette à família Thènardier, um estalajadeiro e sua esposa, na esperança de que sua filha pudesse desfrutar de um futuro melhor do que ela poderia oferecer. Vendo-se sozinha e com o coração partido, ela seguiu em frente, eventualmente recorrendo à prostituição para sobreviver. Enquanto Fantine suportava sua solidão e pobreza, sua filha Cosette experimentou um outro tipo de miséria que afetou os jovens da França pré-Revolução.
 
Cosette foi impiedosamente abusada por sua família adotiva sem qualquer intervenção do Estado ou proteção legal. Fantine a deixou com a certeza de que os guardiões eram pessoas inerentemente boas e gentis, mas acredito que isso se baseava muito mais em esperanças de seu coração do que evidências e fatos concretos. Os Thènardier praticamente usavam a menina como uma escrava desde seus cinco anos, assim que se tornou capaz de segurar uma vassoura. Eles nunca a deixaram esquecer que estava permanentemente em dívida com eles por salvá-la de uma vida sombria de pobreza. Aqui, Victor Hugo nos apresenta a negligência da sociedade francesa, sendo comum crianças sofrerem diante de adultos abusivos e crescerem com essa realidade, essa criação, sem qualquer educação formal ou informal. Muitas se tornavam prostitutas ou recaíam ao crime, perpetuando um círculo que infelizmente se enraizava na dinâmica social francesa.
 
Ao narrar as histórias conturbadas de Jean Valjean, Fantine e Cosette, Victor Hugo nos mostra a situação desesperadora dos necessitados que finalmente culminou na Revolução. Dezenas de homens receberam sentenças excessivamente duras e ruinosas por crimes cometidos para que suas famílias pudessem comer, e muitas mulheres enfrentaram situações familiares aparentemente impossíveis e sofreram no local de trabalho por causa disso. Enquanto isso, as crianças ficavam completamente desprotegidas. E assim a nossa obra se contextualiza.
 
Voltando a Jean Valjean, mais uma vez refém da condição da pobreza e sem alterativas, durante uma noite ele rouba os talheres e pratos de prata do benevolente Bispo Myriel. Ele eventualmente é preso e levado de volta ao Bispo, que, na frente da polícia, diz que deu os pertences a Valjean, acrescentando ainda alguns castiçais de prata. O Bispo aproveita a ocasião para atar Valjean a uma “promessa” de usar a prata para se tornar um homem bom e honesto. Perplexo e sem entender o que aconteceu, Jean Valjean volta para os Alpes e encontra um jovem trabalhador viajante de Savoy chamado Petit Gervais. Valjean rouba uma moeda do jovem, mas fica com vergonha e se arrepende, lembrando das palavras do Bispo e selando sua redenção.
 
No final de 1815, Jean Valjean, agora usando o nome de Madeleine, chega a Montreuil-sur-Mer. Ele revoluciona a manufatura da cidade e ganha uma fortuna, que gasta principalmente para o bem da cidade, pagando pela manutenção de leitos hospitalares, orfanatos e escolas. Bela sua atuação em pró dos pobres e benevolência, ele acaba por ser nomeado prefeito. E é nessas condições que as histórias de Valjean e Fantine se cruzam, ao mesmo tempo formalizando de vez a figura do policial Javert em suas vidas.
 
Valjean (como Madeleine) salva da morte um velho chamado Fauchelevent, levantando a carroça que o estava esmagando. A cena chama a atenção de Javert, experiente policial francês que já encontrou tanto Valjean em suas atuações passadas, que começa a duvidar da identidade do prefeito Madeleine. Mais tarde, as histórias de Javert e Fantine se cruzam, quando o policial a prende ao vê-la atacar o burguês Bamatabois, que provocou Fantine e jogou neve em seu vestido enquanto ela andava em busca de clientes. Valjean ficou sabendo do ocorrido e advoca pela prisão de Bamatabois e liberdade de Fantine, levando-a ao hospital e, ao ficar sabendo da existência de Cosette, tenta pagar os Thénardiers para reunir mãe e filha.
 
Eu não me sinto confortável em compartilhar mais da história, pois muitos enredos e detalhes se cruzam, informações que podem ser cruciais para uma leitura sem “spoilers”. Ao mesmo tempo, é inegável que a história do livro é muito conhecida, e quem quiser saber mais pode procurar as diversas adaptações disponíveis. Esse é o lado bom dos clássicos: eles são conhecidos e representados, e com a informação que possuímos hoje, é relativamente mais simples procurar informações sobre o enredo das obras.
 
Por isso, acho que o que eu posso falar de diferente é o que o livro representa para mim. Ele foi no meu imaginário um conto de fadas situado em uma página turbulenta da história, trabalhando com assuntos viscerais e atemporais. O senso de justiça e benevolência, aliado à necessidade de mudanças, com pontadas de amor, faz dessa obra completa. Foi por esse motivo que eu escolhi não reler o livro, mantendo intactas minhas memórias e não alterando essa minha percepção fantástica. Talvez seja uma saída covarde, pois uma releitura certamente traria mais camadas à história, mas a minha opção foi por estender mais um pouco uma narrativa incrível.
 
O livro por vezes é lento e alguns enredos custam a fazer sentido e desenvolverem. Dessa forma, entendo completamente quem tentou ler e acabou abandonando. Acredite, não é fácil! Mas é um livro que você o fecha e entende que tudo tinha uma razão, tudo estava casado. Na verdade, a gente sofre um pouquinho com a leitura, mas acaba esquecendo todos esses apertos diante da grandiosidade de tudo.
 
E é assim que se faz um clássico!
 
  
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