O Vermelho e o Negro - Stendhal
>> sexta-feira, 16 de abril de 2021
STENDHAL. O Vermelho e
o Negro. São Paulo: Penguin e Companhia das Letras, 2018. 612p. Título original: Le Rouge et le Noir: Chronique
du XIX siécle.
Eu me lembro claramente do meu
primeiro contato com a obra de Stendhal. Estava na aula de literatura (talvez a
minha matéria favorita da escola), e lá estava a obra citada no livro didático
como o grande exemplo da literatura realista. Eu gravei essa cena na minha
memória por que desde sempre tive uma queda pelos clássicos – aqueles livros
que conseguem superar os desafios do tempo e da história para se firmarem no
imaginário social – mas nunca tinha ouvido falar sobre Stendhal.
Eis que no final de 2020 me
deparei com a obra na estante virtual do Audible, aplicativo da Amazon para
Audiolivros, na sessão de clássicos. Como o cheiro da Madeleine de Proust,
lembrei imediatamente de como era minha vida como uma adolescente um pouco
excêntrica e como as aulas de literatura eram um refúgio para a minha
personalidade sempre um pouco fora da curva. Talvez para saciar uma curiosidade
de quase 20 anos, usei meus créditos mensais para adquirir esse calhamaço e
estudar um pouco sobre o que faz desse livro um clássico realista da literatura
francesa.
O Vermelho e o Negro (mas
você também pode encontrar edições com o título “O Vermelho e o Preto”) é um
livro do escritor francês Stendhal publicado em 1830. Na edição francesa ele
tem um subtítulo: Crônica do século XIX, que foi esquecido nas edições
em inglês e português, talvez pelo ar presunçoso e científico que traz. Ele nos
conta a história de Julien Sorel, um ambicioso e inteligente filho de carpinteiro
da fictícia Verrières, no Franco Condado (região de Borgonha).
A história é contada no
formato do narrador onisciente, nos possibilitando conhecer os mais íntimos e ínfimos
detalhes do pensamento, características e caráter do protagonista. De cara
percebemos se tratar de um romance psicológico (e estranhamente encontrei
semelhanças com o estilo de Virginia Wolfe, vai-se saber!), daqueles que deixam
os personagens completamente expostos, nus e crus. O livro também traz uma
explícita (até demais) crítica à moral e valores da sociedade francesa, bem
como toda a hipocrisia de suas instituições.
O livro se passa durante a
Restauração Francesa, aparentemente entre 1825 e 1830. O enredo central conta como
é (ou não) possível subir na vida e alcançar a alta sociedade francesa sendo
plebeu, vindo de uma família de baixa renda e trabalhadora, mas possuindo
talento, inteligência, e uma boa dose de malícia e mau caráter.
Julien Sorel tem todas as
características necessárias para subir na vida: ele é inteligente, interessado
e se relaciona bem com as pessoas. Porém ele é apenas o filho de um
carpinteiro. Ele passa os dias sonhando com o passado glorioso do exército
francês e as gloriosas vitórias lideradas por Napoleão. Indignado por ter que
trabalhar no negócio da família, ele acaba conhecendo o Abbé Chélan, um clérigo
católico, que cria um carinho por Julien e o recomenda para um emprego como tutor
dos filhos de Monsieur de Rênal, o prefeito de Verrières. Julien se apresenta
como um clérigo honroso, mas não suporta os estudos religiosos. Ele começa a mostrar
seu verdadeiro caráter ao usar expressões aleatórias em latim para se exibir e
se projetar como um estudioso religioso muito maior do que ele é, na tentativa
de impressionar a influente família de Rênal.
Com o tempo, ele começa um caso com a
esposa de Monsieur de Rênal, até que Elisa, uma empregada da casa, descobre e
fofoca para a cidade. Com isso, o Abbé Chélan despacha Julien para um seminário
em Besançon. Lá, novamente o jovem cai nas graças de um religioso, dessa vez o
diretor Pirard, que vira o protetor de Julien, até que o recomenda a trabalhar
como o assistente particular do Marquês de la Mole, um legitimista católico.
Com De la Mole, Julien convive com a alta sociedade parisiense, mas sofre na
pele o preconceito por ser plebeu. A partir daí, o jovem vai caminhando pela
vida como pode, sempre tentando se manter relevante e se firmar, seja com
relacionamentos amorosos com mulheres influentes, seja navegando pela sociedade
demonstrando um intelecto que nem ele sabe mais se tem. Enfim, a hipocrisia!
A hipocrisia pode ser
considerada o assunto principal do romance, o que já aparece no título da obra
(tanto discutido e analisado): o “preto” aparentemente se refere à igreja, e o “vermelho”
ao exército francês – as duas aspirações de Julien. Cada ação e pensamento de
Julien e especialmente dos personagens secundários é misturado com uma
quantidade substancial de hipocrisia, da qual alguns estão completamente
conscientes. O “preto” sempre é manchado pelo “vermelho”, e nenhum dos dois é
puro. Essa é a lição de moral do autor: a sociedade francesa do século XIX não
é pura. Ela é hipócrita, mesquinha e vingativa, e uma pessoa também o deve ser
se ali quer se aventurar.
A Alice de 2021 lendo o
livro que chamou a atenção da Alice de 2002 acabou não aproveitando tanto o
livro assim. Sei que em 2002 eu era completamente apaixonada descobrindo as
revoluções da história e o comportamento da sociedade pelos tempos, e esse
livro teria sido uma leitura apaixonante e revigorante para ela. Porém, a Alice
de 2021 é mais vivida, menos encabulada e um pouco mais “vacinada” quanto à
dinâmica da sociedade. Para mim, em 2021, o livro foi um pouco apelativo, com a
narrativa cansativa (eu confesso que abandonei a leitura algumas vezes) e um
pouco desesperador ao detalhar o caráter humano, especialmente das personagens femininas.
Talvez em 2002 eu ainda entendesse o viés da caricatura e dos personagens
construídos para dar embasamento a um ponto que o autor quer defender: não se
chega à sociedade, se nasce nela. Mas em 2021, eu não consigo negar aquilo que
mais me atrai em uma leitura: as nuances e complexidades de personagens que são
inerentemente falos, não só bons ou ruins (ou no caso do livro, só ruins). Por
isso não aproveitei tanto a leitura, mas fico feliz por ter fechado esse
capítulo da minha história literária.
Para você que deseja se
aventurar pelas páginas de um grande clássico da literatura francesa (e mundial),
uma dica: contenha suas expectativas. Com o tempo a gente aprende que nem todos
clássicos são agradáveis de ler, mas todos eles tem um ponto importante, em
marcar um momento histórico. Está aí o grande valor do livro, e nenhuma nota
ruim ou crítica que eu fizer vai apagar sua importância!
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