Minha relação com a Virginia
Woolf é um pouco complicada. Acho que eu pesquisei muito sobre a vida pessoal e
influência da autora antes de ler um de seus livros, de forma que sempre achei
seu nome e o que representa uma coisa muito intimidadora. Li
Mrs. Dalloway
com um ar de reverência, um sentimento de “quem sou eu para falar algo de ruim
desse livro”. E toda essa polpa, todo esse requinte que criei em minha cabeça
fantasiosa me afastou das outras obras da autora. Woolf sempre intimidou: como
uma escritora respeitada e celebrada em seu tempo, o que sabemos nem sempre ser
o caso, ela exerceu sua influência durante muito tempo com o seu grupo de
amigos, pessoas artísticas e importantes, letradas, estudadas e com várias
ideias a apresentar. Ela soube aproveitar a vida e quebrou convenções, mesmo
quando lidava com seus demônios pessoais que acabaram por leva-la a morte
precoce.
Orlando é uma de suas obras mais comentadas pela
genialidade do tema e dos assuntos abordados, e por deixar bastante claro como
a autora estava além de seu tempo. Woolf nasceu em 1882 e cresceu como uma
vitoriana, quando os papéis de gênero eram estritamente observados na sociedade.
Publicado em 1928, o livro trata de temas que até hoje são imensos tabus
sociais: a mudança de sexo, a fluidez do gênero e o papel (e a recepção) da
mulher na sociedade. Escrito como uma carta de amor à poeta e novelista
VitaSackville-West, a quem o/a protagonista é fortemente inspirado, Orlando
divaga entre os gêneros biografia e ficção, no que eu melhor posso definir como
uma ficção biográfica.
Virginia Woolf eliminou as coordenadas usuais da
biografia e partiu no tempo como se fosse um elemento, não uma dimensão. A
história é simples: Orlando é um jovem nobre, de 16 anos, no reinado de
Elizabeth I. Depois de uma série de aventuras e decepções no amor, na vida e na
poesia, ele assume uma nomeação como embaixador britânico em Constantinopla.
Aos 30 anos, ele acorda uma manhã de um sono morto de uma semana para descobrir
que agora é uma mulher, um fato tão corriqueiro quanto tomar café e escovar
dentes.
Para
um breve interlúdio após a transformação (ou transição) de homem para mulher de
Orlando, a autora levanta a possibilidade de não estar vinculado ao sexo, e
tenta falar de Orlando com o pronome "they", como uma pessoa contendo
eus masculinos e femininos: A mudança de sexo, embora tenha alterado seu
futuro, não fez absolutamente nada para alterar sua identidade.
Essa é a fluidez do gênero trazida pela autora. Orlando
retorna à Inglaterra e descobre que tudo muda com o passar dos séculos, mas
ele, ou melhor, ela continua como antes.
Virginia Woolf situou o evento mais importante
em Orlando, a celebrada mudança de sexo, em Constantinopla. Acredito que a
autora vê esse místico e celebrado lugar como um símbolo global multivalente
que engloba três das forças mais significativas em sua vida: o amor, a morte e
a violência. Inclusive, a confluência de biografia e ficção levanta a
questão de que qual gênero facilita a percepção adequada da verdade, mas
deixamos essas considerações para os estudiosos da autora.
O que mais chama a atenção é a diferença de tratamento
social dado ao Orlando homem e à Orlando mulher. Tudo isso foi possível graças
à vida e experiência de
Sackville West. A liberdade ao se vestir e o
privilégio masculino são invertidos na biografia de Woolf, quando Orlando, como
mulher, descobre como as roupas que ela deve vestir são pesadas e como suas
liberdades são restritas. Um incidente em Constantinopla hilariantemente quase
causa a morte de um marinheiro quando Orlando, agora mulher, inocentemente mostra
seus tornozelos.
A transição do personagem é mais gradual do que a mudança para o pronome
feminino sugere. No início, Orlando adota calças turcas unissex, e só depois de
sentir as novas vestimentas e a mudança de atitude de observar os homens é que
começa a perceber as consequências de sua nova identidade. Seu controle sobre
suas propriedades e sua posição nobre estão repentinamente sujeitos a processos
que se arrastam por centenas de anos.
É diferente ser mulher, o mundo é outro, tanto a
sociedade elizabetana quanto o celebrado século XX – cuja passagem de tempo é
meu trecho favorito do livro. Os processos da mulher Orlando são mais
demorados; seu relacionamento na sociedade tem mais armadilhas e nuances; sua aceitação
como poeta é um pouco diferente:
De volta a Londres, no final do século XVIII,
Orlando passa seu tempo tentando reunir a sabedoria dos grandes escritores
masculinos da época, Pope, Addison e Swift, mas seu sexo torna impossível falar
livremente com eles. Ela mal consegue dizer uma palavra e é ignorada e tratada
com condescendência quando o faz. Frustrado, Orlando veste sua velha roupa
masculina, sai às ruas e encontra uma prostituta, com quem ela pode finalmente
ter uma conversa franca, de mulher para mulher.
Orlando é um personagem que se recusa a se submeter a convenções e nos
convida a considerar a possibilidade de que todas as nossas certezas sejam fatos
ou apenas criações sociais. E todo esse jogo nos mostra o que Orlando sempre se
considerou: um ser humano, fluido e leve, que acompanhamos por 400 anos
de vida (sim, o tempo é relativo nesta obra) até 11 de outubro de 1928 - último
dia do romance e data de publicação do mesmo, quando ela comemora 36 anos.
A importância da obra é inegável, porém eu acho que
preciso da linearidade temporal, das certezas do relógio, para conseguir
devidamente desfrutar um enredo. Foi muito interessante acompanhar as mudanças
da Inglaterra e sua sociedade, especialmente o início do século XX, mas eu me
perdi um pouco nos objetivos e paixões de Orlando. Publicar seu livro de poesia,
que tanto era uma paixão, perde importância com esse tempo fluido, dando lugar aos
questionamentos da identidade de gênero e sua descoberta como ser humano.
Esse foi mais um livro que escolhi desfrutar na
modalidade audiolivro, algo consolidado em minha vida e minhas preferências,
especialmente quanto a clássicos. Como o livro não é muito grande, a escuta foi
rápida e muito fluida, e a linguagem em inglês me surpreendeu pela sua
facilidade, mesmo sendo uma obra mais antiga e que normalmente conta com um
texto mais pesado e formal. Mais uma vez isso atesta os méritos da autora em
ser uma voz além do seu tempo e pensar no impacto da escrita para além das
elites intelectuais, onde ela mesma estava inserida. Creio que quem optar pela
boa e velha leitura do livro não terá maiores problemas: o livro é lindo, leve
e solto, fácil de ler em um ritmo nem muito acelerado e nem devagar – na medida
certa!
Avaliação (1 a 5):