Orlando – Virginia Woolf

>>  sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 


Minha relação com a Virginia Woolf é um pouco complicada. Acho que eu pesquisei muito sobre a vida pessoal e influência da autora antes de ler um de seus livros, de forma que sempre achei seu nome e o que representa uma coisa muito intimidadora. Li Mrs. Dalloway com um ar de reverência, um sentimento de “quem sou eu para falar algo de ruim desse livro”. E toda essa polpa, todo esse requinte que criei em minha cabeça fantasiosa me afastou das outras obras da autora. Woolf sempre intimidou: como uma escritora respeitada e celebrada em seu tempo, o que sabemos nem sempre ser o caso, ela exerceu sua influência durante muito tempo com o seu grupo de amigos, pessoas artísticas e importantes, letradas, estudadas e com várias ideias a apresentar. Ela soube aproveitar a vida e quebrou convenções, mesmo quando lidava com seus demônios pessoais que acabaram por leva-la a morte precoce.
 

Orlando é uma de suas obras mais comentadas pela genialidade do tema e dos assuntos abordados, e por deixar bastante claro como a autora estava além de seu tempo. Woolf nasceu em 1882 e cresceu como uma vitoriana, quando os papéis de gênero eram estritamente observados na sociedade. Publicado em 1928, o livro trata de temas que até hoje são imensos tabus sociais: a mudança de sexo, a fluidez do gênero e o papel (e a recepção) da mulher na sociedade. Escrito como uma carta de amor à poeta e novelista VitaSackville-West, a quem o/a protagonista é fortemente inspirado, Orlando divaga entre os gêneros biografia e ficção, no que eu melhor posso definir como uma ficção biográfica.
 
 
Virginia Woolf eliminou as coordenadas usuais da biografia e partiu no tempo como se fosse um elemento, não uma dimensão. A história é simples: Orlando é um jovem nobre, de 16 anos, no reinado de Elizabeth I. Depois de uma série de aventuras e decepções no amor, na vida e na poesia, ele assume uma nomeação como embaixador britânico em Constantinopla. Aos 30 anos, ele acorda uma manhã de um sono morto de uma semana para descobrir que agora é uma mulher, um fato tão corriqueiro quanto tomar café e escovar dentes. Para um breve interlúdio após a transformação (ou transição) de homem para mulher de Orlando, a autora levanta a possibilidade de não estar vinculado ao sexo, e tenta falar de Orlando com o pronome "they", como uma pessoa contendo eus masculinos e femininos: A mudança de sexo, embora tenha alterado seu futuro, não fez absolutamente nada para alterar sua identidade.
 
Essa é a fluidez do gênero trazida pela autora. Orlando retorna à Inglaterra e descobre que tudo muda com o passar dos séculos, mas ele, ou melhor, ela continua como antes. Virginia Woolf situou o evento mais importante em Orlando, a celebrada mudança de sexo, em Constantinopla. Acredito que a autora vê esse místico e celebrado lugar como um símbolo global multivalente que engloba três das forças mais significativas em sua vida: o amor, a morte e a violência. Inclusive, a confluência de biografia e ficção levanta a questão de que qual gênero facilita a percepção adequada da verdade, mas deixamos essas considerações para os estudiosos da autora.
 
O que mais chama a atenção é a diferença de tratamento social dado ao Orlando homem e à Orlando mulher. Tudo isso foi possível graças à vida e experiência de Sackville West. A liberdade ao se vestir e o privilégio masculino são invertidos na biografia de Woolf, quando Orlando, como mulher, descobre como as roupas que ela deve vestir são pesadas e como suas liberdades são restritas. Um incidente em Constantinopla hilariantemente quase causa a morte de um marinheiro quando Orlando, agora mulher, inocentemente mostra seus tornozelos. A transição do personagem é mais gradual do que a mudança para o pronome feminino sugere. No início, Orlando adota calças turcas unissex, e só depois de sentir as novas vestimentas e a mudança de atitude de observar os homens é que começa a perceber as consequências de sua nova identidade. Seu controle sobre suas propriedades e sua posição nobre estão repentinamente sujeitos a processos que se arrastam por centenas de anos.
 
É diferente ser mulher, o mundo é outro, tanto a sociedade elizabetana quanto o celebrado século XX – cuja passagem de tempo é meu trecho favorito do livro. Os processos da mulher Orlando são mais demorados; seu relacionamento na sociedade tem mais armadilhas e nuances; sua aceitação como poeta é um pouco diferente: De volta a Londres, no final do século XVIII, Orlando passa seu tempo tentando reunir a sabedoria dos grandes escritores masculinos da época, Pope, Addison e Swift, mas seu sexo torna impossível falar livremente com eles. Ela mal consegue dizer uma palavra e é ignorada e tratada com condescendência quando o faz. Frustrado, Orlando veste sua velha roupa masculina, sai às ruas e encontra uma prostituta, com quem ela pode finalmente ter uma conversa franca, de mulher para mulher.
 
Orlando é um personagem que se recusa a se submeter a convenções e nos convida a considerar a possibilidade de que todas as nossas certezas sejam fatos ou apenas criações sociais. E todo esse jogo nos mostra o que Orlando sempre se considerou: um ser humano, fluido e leve, que acompanhamos por 400 anos de vida (sim, o tempo é relativo nesta obra) até 11 de outubro de 1928 - último dia do romance e data de publicação do mesmo, quando ela comemora 36 anos.
 
A importância da obra é inegável, porém eu acho que preciso da linearidade temporal, das certezas do relógio, para conseguir devidamente desfrutar um enredo. Foi muito interessante acompanhar as mudanças da Inglaterra e sua sociedade, especialmente o início do século XX, mas eu me perdi um pouco nos objetivos e paixões de Orlando. Publicar seu livro de poesia, que tanto era uma paixão, perde importância com esse tempo fluido, dando lugar aos questionamentos da identidade de gênero e sua descoberta como ser humano.
 
Esse foi mais um livro que escolhi desfrutar na modalidade audiolivro, algo consolidado em minha vida e minhas preferências, especialmente quanto a clássicos. Como o livro não é muito grande, a escuta foi rápida e muito fluida, e a linguagem em inglês me surpreendeu pela sua facilidade, mesmo sendo uma obra mais antiga e que normalmente conta com um texto mais pesado e formal. Mais uma vez isso atesta os méritos da autora em ser uma voz além do seu tempo e pensar no impacto da escrita para além das elites intelectuais, onde ela mesma estava inserida. Creio que quem optar pela boa e velha leitura do livro não terá maiores problemas: o livro é lindo, leve e solto, fácil de ler em um ritmo nem muito acelerado e nem devagar – na medida certa!

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