Grande sertão: veredas - João Guimarães Rosa
>> sexta-feira, 14 de agosto de 2020
ROSA,
João Guimarães. Grande sertão:
veredas. São Paulo: Círculo do
livro, 1984. 465 p.
Preciso
iniciar esta resenha pedindo desculpas pelo que está por vir. Nada do que eu
disser, nem a forma como disser, será capaz de expressar o que esse livro
representa, o que é atravessar o grande sertão ou os sentimentos que ele nos
transmite ao longo da leitura. Então, só me resta tentar. Grande sertão:
veredas é talvez o livro mais temido por todo leitor e, possivelmente, o
recordista de não-adeptos na época da escola, quando somos obrigados a encarar
clássicos os quais não compreendemos e que, muitas vezes, nos deixam
traumatizados ao final da leitura. Eu sei, já havia tentado ler esse livro
anteriormente e foi uma catástrofe total. Lá pela página 30, depois de ler mais
de 8 vezes o mesmo parágrafo, abandonei a leitura. Anos depois, conversando com
meu esposo a respeito, ele me disse que achava que, após tantos anos, tendo me
tornado uma leitora mais “experiente”, deveria dar uma nova chance ao livro.
Prometi a mim mesma que faria isso um dia, mas mesmo assim continuei
protelando.
Em
plena pandemia, com leituras coletivas bombando nos canais e páginas de
influenciadores literários, uma das booktubers que acompanho informou que
iniciaria a leitura coletiva de Grande Sertão no mês de julho. Uma luz se
acendeu na minha cabeça quando compreendi que finalmente chegara o momento de
atravessar o grande sertão. Então peguei minha bagagem de leitora e me pus para
a grande travessia.
“O
diabo na rua, no meio do redemunho...”
Riobaldo
é um jagunço, digamos aposentado, que vive no interior e que é o tempo todo assombrado
pelos acontecimentos de seu passado como jagunço.
Um
dia, ele recebe uma visita de um homem da cidade grande e resolve lhe contar a
sua vida, sua travessia.
Nesse
momento, somos transportados para a infância de Riobaldo, quando, aos 14 anos
de idade, ele se pôs a pedir esmolas no porto, às margens do rio São Francisco,
para pagar a promessa feita por sua mãe quando ele ficou muito doente, à beira
da morte.
Em
um desses dias de pedinte, Riobaldo conhece um garoto lindo e corajoso que o
faz ficar não só encantado, como enfrentar o seu medo de atravessar o rio a
canoa, e então vão passear juntos. Riobaldo nunca se esqueceu daquele menino de
quem não sabia o nome.
Anos
depois, Riobaldo conhece um grupo de jagunços que está de passagem pela casa de
seu padrinho, e, dentre esses jagunços, está aquele garoto que ele conheceu aos
14 anos. Agora, ele descobre seu nome: Reinaldo.
Riobaldo
então começa a seguir esse grupo de jagunços ao longo do sertão mineiro até o
baiano, sempre a fugir de um grupo de soldados que está atrás dos jagunços com
a finalidade de acabar com a atividade.
Muitas
aventuras acontecem com o grupo de Riobaldo e também entre ele e Diadorim, lembranças
que vão seguir Riobaldo pelo resto da vida.
Enquanto
conta todo o ocorrido ao visitante vindo da cidade, nosso narrador vê
ressuscitarem grandes dúvidas sobre si, sobre remorsos, sobre a existência de
Deus e do diabo, dúvidas que o seguem desde que iniciou sua travessia pelo
sertão.
~~~~~~~~
“Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor
sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.” p. 7
“O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro,
sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu que
quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.” p. 13
A
história é narrada em forma de monólogo, já que Riobaldo é o único a falar ao
longo das 465 páginas do livro. Seu interlocutor misterioso até parece
responder ao longo da história, contudo não o ouvimos. Sabe-se, às vezes, o que
ele pergunta, pela forma com que Riobaldo responde, mas não há fala
propriamente dita desse interlocutor.
Nessa
forma como é narrada a história, portanto, temos um narrador nada confiável, já
que Riobaldo conta tudo pelo seu ponto de vista. Não é de bom-tom confiar em
narradores assim, rs, já que não sabemos até que ponto o que ele conta é
verdade, é real. Mas isso em nada desmerece o que é contado por ele.
Uma
coisa que me chamou a atenção, ao longo da leitura, foi que as primeiras
páginas são realmente muito complexas de ler. Como a minha leitura foi dividida
em porcentagem, creio que até aproximadamente 30% do livro a história ainda se
mostrava muito complexa, e, por várias e várias vezes, tive que retomar o texto
um pouco antes de onde havia parado, para pegar o fio da meada de volta, rs.
Porém,
a partir do momento em que Riobaldo retorna à sua adolescência – e, a partir de
então, começa a narrar em ordem cronológica –, tudo o que foi narrado anteriormente
passa a fazer total sentido, e o livro começa a caminhar a passos mais rápidos
pelo grande sertão.
Não
digo que o texto passa a ficar propriamente fácil de ler. O que acontece é que,
após alguns dias de leitura, ao adentrar mais e mais a história, acabei me
acostumando e precisando voltar menos para me localizar na leitura.
Achei
essencial que a leitura tenha sido feita aos poucos (li em 20 dias, 5% por
dia). Isso me ajudou muito a ir assimilando a escrita de Guimarães Rosa e a ir digerindo
a história aos poucos, e fazendo ela fixar mais, até a leitura do dia seguinte.
Deixo
aqui, ainda, uma dica: não tente parar o texto a todo momento para tentar
pesquisar e entender o significado dos neologismos de Guimarães Rosa. Já no
colégio nos é ensinado que uma das características do autor é a criação de
palavras que, consequentemente, não serão encontradas no dicionário comum, ou
até serão, mas com significado diverso do pretendido pelo autor no texto.
Assim, tente sentir o que a palavra representa no contexto e como ela se
encaixa no texto, e bola pra frente! (#ficaadica)
Outro
ponto que me chamou a atenção – e que me fez compreender por que escolas e alunos
de cursos de graduação/pós/mestrado estudam essa obra por anos e anos – é que
ela é uma fonte inesgotável de pesquisa. Ao lê-la, o leitor pode interpretar de
tantas formas! Pode-se analisar o texto sob o ponto de vista político,
geográfico, psicológico, romântico, filosófico e tantos outros, e ainda assim
encontrar assunto para se discutir e estudar.
Vemos
um Riobaldo à procura de uma resposta quase metafísica para suas dúvidas, sobre
a existência, sobre Deus e o diabo, sobre o bem e o mal, o céu e o inferno, a culpa
e a redenção. Dúvidas estas que nos colocam para pensar, ainda que
involuntariamente, sobre as questões da existência e de “ser tão” apaixonado,
dedicado, mau, bom, bonito, feio.
O
final me deixou em prantos, e arrasada, e arrebatada, de forma irreversível. E
eis que, em prantos uma vez mais, termino este relato da minha experiência com tal
espetáculo sem igual da literatura brasileira!
Aquele
que antes havia constado no meu Skoob como “Abandonado”, passou direto para a
prateleira virtual dos “Favoritos” e, sem dúvida, foi uma das experiências
literárias mais difíceis, marcantes e inesquecíveis da minha vida como leitora.
Sinto
que saí dessa experiência uma leitora e uma pessoa completamente diferente do
que entrei. O que espero com esta resenha é, pelo menos, mostrar a você leitor
que, sim, Grande sertão: veredas é uma leitura possível.
Se
eu atravessei o grande sertão, indico a todos que o façam também!
Adicione
ao Skoob!
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