Minha sombria Vanessa - Kate Elizabeth Russel
>> quarta-feira, 17 de junho de 2020
RUSSELL,
Kate Elizabeth. Minha sombria Vanessa. Rio
de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020. 452p. Título original: My dark Vanessa.
Sempre
considerei a literatura um meio não só de nos distrairmos do mundo real, mas
também um caminho para compreendermos melhor essa realidade. Tem gente que faz
isso assistindo ao jornal, acreditando que assim compreenderão melhor o mundo;
outros, assistindo a documentários. Eu faço isso lendo. Obviamente, não me
tornei uma expert no quesito “mundo e o que nele acontece”, mas tento tirar das
leituras o maior proveito possível para minha vida e meu modo de pensar e ver o
mundo, tanto num livro fofo, quanto num livro que listo como “necessário”, tal como
considero Minha sombria Vanessa. Vamos falar um pouco a respeito dele? Vem
comigo!
Anos
2000: Vanessa Wye sempre foi uma garota introspectiva, por vezes até mesmo
sombria, solitária. É muito boa em se expressar por meio das palavras, por isso
está sempre escrevendo poesia. Jacob Strane, professor de literatura de Vanessa
no colégio interno onde ela estuda, repara nessa habilidade dela e passa a
elogiar tanto o talento da aluna, quanto sua beleza. Vanessa inicialmente acha
que isso não passa de um professor simplesmente dando maior atenção a uma aluna
especial em relação aos outros. Porém, com o passar dos dias, vai observando
que é muito mais do que isso.
Ela,
então, passa a manter sentimentos contraditórios quanto ao professor, contudo,
de repente, se vê envolvida em uma relação que a marcará para sempre, de uma
forma perversa e irreversível.
2017:
Vanessa, agora uma mulher de 32 anos, está acompanhando sem descanso as
postagens de uma mulher na internet que denuncia Jacob Strane por abuso sexual
ocorrido quando a mulher tinha quatorze anos, no colégio interno em que
estudava nos anos 2000.
Vanessa
não está acompanhando as postagens por solidariedade à moça, Taylor, mas porque
esse escândalo lhe traz de volta as lembranças daquele passado cujas marcas e cuja
presença de Strane ela carrega até hoje.
Mas
o que ela pretende fazer em relação às postagens? Será que pretende se
posicionar a favor da moça e assim rejeitar a ideia de que aquele homem foi seu primeiro amor, ou vai continuar afirmando que tudo que aconteceu entre eles se
deu por sua livre e espontânea vontade, e que essa coisa de consentimento não
existe, ainda que a pessoa seja tão jovem?
“-Eu não consigo.
- Tudo bem – diz ela –
Não precisa ter pressa.
- É que eu sinto... –
pressiono a base das mãos nas coxas – Não posso soltar o que estou segurando a
tanto tempo. Você entende? – Meu rosto se contorce com a dor de colocar aquilo
para fora. – Eu simplesmente preciso muito que seja uma história de amor. Você
entende?
-Eu sei.
-Porque se não for uma
história de amor, então o que é?
Olho para seus olhos
brilhantes, para sua expressão de empatia sincera.
-É a minha vida – digo.
– Isso tem sido a minha vida inteira.
Ela fica em pé ao meu
lado enquanto eu digo que estou triste, muito triste, palavras pequenas,
simples, as únicas que fazem sentido enquanto aperto meu peito feito uma
criança e aponto para onde dói.” p. 372.
A
narrativa é alternada entre presente (2017) e passado (2000 até 2002; depois,
2006 e 2007), ambos narrados em primeira pessoa pela própria Vanessa. Assim, o leitor
conhece a protagonista primeiramente como adulta, a pessoa que ela se tornou
depois que tudo aconteceu, e, no capítulo seguinte, inicia um retorno ao
passado, nos anos 2000.
Não
quero ser repetitiva em relação às edições que a Editora Intrínseca tem
publicado, mas é que não tem como não admirar a qualidade cada vez maior das
edições. Elas guardam total relação com o conteúdo e isso, na minha humilde
opinião de leitora, contribui ainda mais para que o leitor entre na história.
No
caso deste livro, por exemplo, a edição se mostra tão sombria quanto a própria
protagonista e a história em si, o que ajudou muito a entrar nesse universo.
Durante
a leitura, o leitor vai se deparar com referências a artistas da música pop dos
anos 2000, como Britney Spears, que na época era uma diva pop, Fiona Apple, de
quem eu nunca tinha ouvido falar, mas que era considerada uma “antidiva” na
época, por mostrar uma realidade que ninguém gostava de ver (as pessoas não são
perfeitas, aceitem isso!), e Dolly Parton. Há, é claro, referências e mais
referências a Lolita, de Vladmir Nabokov (consultei minha edição várias vezes
para localizar as menções que Vanessa faz), e a outros livros do autor, como
Flores pálidas, além de outros autores, como Silvia Plath.
Aliás,
o título do livro foi extraído de um trecho do poema Fogo pálido, de Nabokov:
“Venha ser
venerada, venha ser acariciada, Minha sombria Vanessa, riscada de carmim, minha
abençoada
Minha admirável
borboleta! Explique
Como você deixou, no
lusco-fusco de Lilac Lane,
O tosco e histérico John
Shade
Molhar de lágrimas seu
rosto, sua orelha e omoplata?” p. 148
Não
sei vocês, mas eu simplesmente adoro quando o livro explica de forma explícita
a origem de seu título.
Falando
especificamente do universo do livro, devo confessar que, após ter lido Lolita,
não esperava encontrar neste mundo uma história que me consumisse tal como a
história de Humbert Humbert e Lolita me havia consumido. Talvez por ser narrada
pela vítima e não pelo abusador? Talvez. Ledo engano.
A
primeira coisa que notei é que a autora não buscou, em nenhum momento,
romantizar o abuso. A própria contracapa do livro já é um aviso a respeito
disso.
O
ponto aqui é justamente mostrar a realidade nua e crua dos relacionamentos (ou,
neste caso, sequer um relacionamento) abusivos. De um lado, o abusador, no caso
Jacob Strane, passa todo o tempo fazendo questão de deixar claro que está
fazendo o que está fazendo porque Vanessa está pedindo, porque ela quis, ela
autorizou e etc. Vai muito além de um abuso sexual, pois o abuso psicológico
(por vezes disfarçado em palavras de “carinho”) também é muito forte e segue
Vanessa até mesmo depois de adulta.
De
outro lado, temos a vítima, no caso Vanessa, que sequer tem tempo de pensar no
que está acontecendo dentro de si, física e mentalmente. Dá pra ver que ela por
vezes tem nojo, sente repulsa de Strane, mas não consegue se afastar,
principalmente depois de algumas palavras de “incentivo” vindas dele. Ela tem a
chance de dizer “não” quando ele faz as perguntas, mas mesmo assim não diz. Por
diversas vezes, ela se pega pensando que deveria correr, fugir, que aquilo não
podia ser normal. Mas ela sempre desistia.
É
muito duro ver o que ela passa na adolescência e todas as consequências que
estão evidentes no seu jeito de ser, na vida que leva, no trabalho, nos
relacionamentos que tem quando se torna adulta.
Mas
o mais difícil de tudo é ver que o abuso sofrido foi tão profundo, a ponto de
Vanessa ter certeza absoluta que não foi uma vítima, que ela e Jacob tiveram
uma história de amor. Ela precisava acreditar nisso, pois a alternativa seria
cruel demais para ela aceitar.
Abuso
sexual existe desde que o mundo é mundo, mas ainda bem que diversos movimentos,
como o #metoo em 2017, ganharam voz pelo mundo e inspiraram tantas e tantas
pessoas a terem coragem de denunciar e externar um caso de abuso ou assédio
sofrido, trazendo à tona casos envolvendo inclusive pessoas famosas. É também
nessa época que Taylor, personagem do livro, resolve soltar o verbo e relatar o
que acontece entre ela e Strane.
E
a minha torcida vai para que mais e mais pessoas, assim como a Taylor, se
sintam inspiradas, encorajadas (possivelmente nem são essas as palavras
corretas, mas eu tento) a contar a sua verdade para o mundo e a não se deixar
calar.
Não
é uma questão de dizer se amei ou não o livro. O que se tem que levar em conta,
como eu disse no início, é que se trata de um livro necessário, então indico
para todas as pessoas de forma geral. Mas fica um aviso, é preciso ter estômago
para ler, e idade igual ou superior a 18 anos. Não digam que eu não avisei!