Lincoln no Limbo – George Saunders
>> sexta-feira, 22 de junho de 2018
SAUNDERS, George. Lincoln no Limbo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 407 p. Título original: Lincoln in the Bardo.
Vou
alterar a tradição das minhas resenhas, de iniciar com a sinopse publicada pela
editora, para depois seguir com meus comentários.
Estamos
diante de uma obra especial, de um estilo literário incomum e inédito, então eu
posso fugir do lugar comum e tentar escrever algo diferente, para mostrar como
este livro foi especial para mim, assim como vem sendo para leitores mundo
afora, recebendo prêmios após prêmios.
Este
livro não merece uma sinopse, mas sim uma “apresentação”, leia-se, uma
introdução histórica, um pequeno detalhe talvez desconhecido pela maioria das
pessoas ao redor do mundo, mas que serviu de inspiração para o autor, George Saunders, criar uma obra surpreendente,
inovadora, que posso afirmar com todas as letras nunca ter visto antes.
Este
livro foi bastante premiado, com destaque para seu estilo narrativo inovador
(que mistura relatos de documentos históricos com diálogos criados, em uma
trama parecida com romances literários). Exatamente por envolver acontecimentos
e pessoas históricas (e reais), faz-se necessário não uma sinopse, mas uma apresentação. Ou seja, um pequeno resumo
dos principais acontecimentos que inspiraram este livro. Então vamos lá:
Apresentação: Com a morte do filho ainda na infância, Abraham Lincoln, o presidente
mais importante da história da democracia, vê seu mundo desmoronar. Em plena
Guerra Civil, Lincoln esquece o país em conflito para lamentar, no limite da
loucura, a morte do filho. Noite após noite, dirige-se à capela do cemitério
para abraçar o cadáver do jovem Willie.
A partir desse
acontecimento histórico, o escritor George Saunders rejeita as convenções
literárias realistas e compõe uma narrativa passada no além — no limbo do
título, ou melhor, no “bardo” do budismo tibetano, o estágio intermediário
entre a morte e o renascimento. Lá, acompanhamos a jornada do jovem Willie,
incapaz de aceitar que está morto. Um romance surpreendente, que reinventa o
gênero de forma radical.
Alternando registro
metafísico e documentos históricos e sem medo de abraçar o experimentalismo,
Saunders coloca em movimento questões existenciais, históricas e políticas e
cria uma obra absolutamente única no cenário contemporâneo.
Já
consigo escutar todos vocês unidos em um só coro gritando “A Alice só gosta de
livro estranho”, e eu tenho que confessar: o estranho me atrai, o estranho me
diverte, o estranho me fascina. Mas só o EXCEPCIONAL me cativa. E é isto que “Lincoln no Limbo” é, uma obra um tanto
quanto excepcional.
A
seguir, falarei um pouco das razões que me levaram a esta conclusão, sem
spoilers, então vocês podem ler a vontade!
Como
comentei no meu post de apresentação,
sou formada em história, mas sou uma criatura híbrida: nunca fui atraída por
obras exclusivamente historiográficas, muito menos por obras baseadas em fatos
históricos. Por isso, inicialmente tive receios de encarar o famoso romance de Saunders (inicialmente me apresentado
por um prestativo vendedor da Livraria Cultura do Conjunto Nacional de São
Paulo, obrigada!), mas me rendi ao ver o lançamento brasileiro, pelo
reconhecido selo da Companhia das Letras.
Inicialmente
me incomodei pelo título escolhido: Lincoln no Bardo seria a tradução original,
com o Bardo a versão “limbo” budista. Porém, comercialmente entendo a escolha,
especialmente lidando com um país majoritariamente cristão.
Após esta
breve análise de título, fui para a análise histórica: eu não sabia que Abraham
Lincoln, o presidente que foi assassinado por um ator frustrado, amado por uma
nação a níveis idolátricos, responsável pela vitória do norte na Guerra Civil
Americana, essencialmente acabando com o regime escravocrata dos Estados Unidos
da América, perdeu o filho mais velho no meio deste combate, e passou dias e
dias em luto, longe de suas funções, sofrendo pelo filho amado.
É aí que
entra a criatividade e genialidade do autor: ele pega esta vírgula da história,
este fato esquecido, e cria um mundo novo, o “Limbo”, local onde o jovem Willie
Lincoln se encontra no momento após a sua morte, no cemitério onde seu corpo
foi velado e deixado para o descanso final.
O autor
encontrou diversos documentos da época relatando os dias de luto e as
constantes visitas do Presidente ao cemitério para ver o filho, inclusive
entrando na cripta e ninando o corpo do seu amado filho. Inclusive, o luto foi tão
avassalador que gerou preocupações de Estado, justamente por causa da Guerra que
pedia o comando de seu líder.
“(...) A lua acaba de aparecer e iluminou as
lápides do cemitério... por um momento tive a impressão de que o terreno
houvesse sido invadido por anjos de várias formas e tamanhos: anjos gordos,
anjos com o porte de cachorros, anjos a cavalo, etc.
Acostumei-me à proximidade destes mortos e a
tê-los como agradáveis companheiros em seus pedaços de chão e frias casas de
pedra.” (p. 30-31)
O trecho
acima é um exemplo do que falei anteriormente: o autor usou relatos históricos,
com referências corretas, para compor o seu texto e criar a sua narrativa. A
frase acima foi utilizada para descrever o cortejo fúnebre do filho do
presidente, Willie, e não foi escrita pelo autor, mas sim por Isabelle
Perkins, em 25 de fevereiro de 1862. O que ele fez foi pegar esta descrição
(bastante poética, diga-se de passagem), dar os devidos créditos e mesclar com
seu próprio texto. Um trabalho belíssimo de quebra-cabeça literário, que nunca
antes vi.
A partir
deste momento, a história nos apresenta um lugar novo, onde tudo acontece: o
Limbo (ou o Bardo, se você ainda se apegar ao título original, como eu ainda me
atenho). Aqui, Willie Lincoln passa a ser o personagem principal e conhece
outras “pessoas”, que mais são almas que não aceitam sua condição (a
mortalidade), e por isso não podem seguir para a reencarnação. Por isso estão
presas no Limbo, e ali ficam até que a aceitação da morte e a vontade de
reviver venha, para que sejam encaminhados para suas novas vidas.
Apenas isso
daria uma boa história, e algo que poderia ser escrito com qualquer pessoa, não
necessariamente uma figura histórica tão importante como Lincoln. Mas é aí que
vem a jogada de mestre que fez deste livro vencedor de diversos prêmios e um
dos mais falados desde o seu lançamento: o autor conseguiu espelhar em Willie o
que Lincoln representava no mundo dos vivos!
Para quem
não conhece, o legado de Abraham Lincoln nos Estados Unidos é de simplesmente
liderar o país durante a sua maior crise interna, a Guerra Civil Americana, e
sair dela vitorioso, com um país unido e a escravidão abolida. Vamos fazer uma
comparação com a nossa Princesa Isabel: pessoas de cor um dia eram mercadorias para
no dia seguinte serem PESSOAS. Sim, a luta pela igualdade e pelos direitos vai
até hoje, mas o momento que lidamos é o da libertação e o surgimento de um
sentimento que até então não existia: esperança.
Mas como
Willie conseguiu representar Lincoln no Limbo? Não, não foi por causa do seu
sobrenome, mas muito teve a ver com seu pai. Veja, no seu processo de dor pós
perda do filho, Lincoln entrava na cripta por dias após a morte do filho,
pegava seu corpo desfalecido e o ninava, conversava com ele, e chorava
copiosamente.
No Limbo,
isso foi visto com estranheza e espanto, pois ninguém NUNCA pegava nos corpos.
Inclusive, tudo que tinha relação com a morte era evitado: caixões eram
tratados como “caixa de doente”, os corpos eram tratados como “o corpo doente”
e as “pessoas-almas” ainda ficavam presas ao que faziam em vida, o que deixaram
para trás, e principalmente suas preocupações.
O fato de
Willie ser constantemente tocado fez surgir uma esperança no limbo, a esperança
dele ser diferente, dele poder fazer algo por eles, quem sabe voltar, e
resolver os problemas e as pendências, as preocupações. “Pessoas-almas” que ficavam
escondidas começaram a aparecer e exigir seu direito de serem ouvidas por
Willie, e faziam filas imensas. Movimentos começaram a acontecer, e até mesmo
os excluídos – aqueles enterrados como indigentes – se movimentaram exigindo os
mesmos direitos dos que receberam as honras devidas.
Ou seja, o
autor conseguiu construir toda uma história no mundo das almas, em que outro
Lincoln liderava indigentes, excluídos e dava esperança às pessoas. E ao
escutar as preocupações e as pendências, essas almas sentiam-se livres e
finalmente aptas à reencarnação.
Acho que nem
preciso associar com o que vinha acontecendo no mundo dos vivos, né? Novas
vozes ouvidas, pessoas com o direito de serem escutadas, e alguém que
represente a diferença entre o ficar (limbo), e o evoluir (reencarnação).
Ao mesmo
tempo, o jovem Willie, durante todo o livro, rejeita o seu status de “alma” e
se mostra frustrado com toda atenção e por não voltar ao mundo dos vivos.
Então, além de ter o crescimento e a aceitação das outras “pessoas-almas”,
principalmente acompanhamos o nosso menino presidencial, neste processo que
deve ser um tanto quanto assustador.
Este livro
me lembrou duas recentes obras, curiosamente escritas e produzidas por latinos
americanos erradicados nos Estados Unidos. “Hamilton”, de Lin-Manuel Miranda é
um fenômeno cultural, musical da Broadway que conta a história de Alexander
Hamilton, com elenco muti racial e músicas variando entre rap e hip hop. O
outro foi o recém filme da Pixar, “Coco” (no Brasil
lançado como “Viva:
a Vida é uma Festa”, por motivos óbvios).
Uma história
de um momento revolucionário, envolvendo uma figura que atualmente está no
dinheiro americano (Hamilton),
com a conversa entre mundos vivos-mortos (Coco) foi
transmitida para a literatura em um enredo que lembra a dramaturgia, mas com
muitos resquícios de romance.
Lincoln no
Limbo é um livro diferente? Sim. Todos vão gostar? Não. Mas é um livro
inovador, que inaugura um estilo e sempre será lembrado? Com certeza!
E nessas
horas eu olho para a literatura moderna brasileira e me pego raivosa, brava por
não ter um movimento classicista deste tipo. Temos uma história tão vasta e
rica, ela pode ser melhor aproveitada. Ela DEVE ser aproveitada.
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