Entre irmãs - Frances de Pontes Peebles
>> quarta-feira, 21 de março de 2018
PEEBLES.
Frances de Pontes. Entre irmãs. São
Paulo: Editora Arqueiro, 2017. 576p. Título original: The seamstress.
Mais um
livro sobre o sertão nordestino! Mais um livro adaptado para o cinema e para a
TV! E, portanto, mais um livro que aguçou, e muito, minha curiosidade. Neste
caso específico, assisti à minissérie, exibida pela Rede Globo logo no início de 2018, sem ter a menor noção, àquela
época, de que se tratava de uma adaptação. Quando descobri, quis ler mais do
que depressa. E não me arrependi nenhuma linha sequer da minha escolha, pela
razão que conto para vocês a seguir.
Taquaritinga
do Norte, sertão de Pernambuco, 1928. Emília e Luzia são
irmãs. Emília, a mais velha, Luzia, a mais nova. Elas são órfãs de mãe,
falecida no parto de Emília. O pai, no início do livro ainda está vivo, mas é
como se não estivesse, pois, após a morte da esposa, abandonou as filhas com a
cunhada e desapareceu no mapa, aparecendo morto tempos depois. Tia Sofia,
então, passa a criar as sobrinhas como se filhas fossem, e tudo o que elas
sabem foi aprendido com a tia.
Com a tia as
meninas também aprenderam a costurar. A profissão de costureira era o ganha-pão
da casa onde as três viviam. A cidade inteira as procurava para consertos,
roupas sob medida, mas o cliente mais fiel era o Coronel Pereira e
também sua esposa, Dona Conceição. Esta pagava cursos de costura
para Sofia e as sobrinhas e adquiriu até uma máquina nova para que pudessem lhe
conceber as melhores costuras.
Luzia é uma
moça séria desde que sofrera um acidente quando mais nova, que deformara seu
braço esquerdo para sempre, rendendo-lhe o apelido de "vitrola".
Desde o acidente, quando supostamente teria morrido e ressuscitado, Luzia se
tornou uma pessoa amarga e sem qualquer perspectiva de futuro, pois quem iria
querer se casar com uma "inválida"?
Emília, por
sua vez, era uma moça cheia de vida que odiava a condição de vida em que vivia
junto com a tia e a irmã, e sonhava um dia em se casar com um homem da capital
ou de São Paulo e deixar aquela vida.
Tudo ia
muito bem, na medida do possível, até que os habitantes de Taquaritinga têm a
notícia de que os cangaceiros que vêm aterrorizando outras cidades do sertão de
Pernambuco haviam chegado à cidade. O chefe do grupo é conhecido como Carcará e
recebeu tal apelido por fazer com suas vítimas o mesmo que a ave carcará faz
com suas presas ao atacá-las: arranca-lhes os olhos.
Quando o
grupo de Carcará chega efetivamente a Taquaritinga e vai até a casa da
autoridade da cidade, o Coronel Pereira, as costureiras são intimadas a
costurar roupas para os cangaceiros do seu grupo. É então que Luzia tem o
primeiro contato mais próximo com aquele que seria o seu futuro marido.
De outro
lado, Emília, após o episódio da aparição dos cangaceiros na cidade, se viu
abandonada tanto pela tia quanto pela irmã, logo ela que jurava deixar tudo e
todos para trás e "ser alguém" na cidade grande.
Enquanto
Luzia ganhava fama no sertão como uma cangaceira, conhecida como
"Costureira", Emília conheceu e se casou com Degas Van Der
Ley Feijó Coelho, filho de Dr. Duarte, um adepto da
frenologia, teoria que afirma ser possível determinar o caráter de uma pessoa
pelo tamanho de seu crânio e vive a medir o crânio de criminosos, e de Dona
Dulce, uma mulher da tradicional sociedade pernambucana e rígida em suas
regras sobre como ser uma boa esposa. Emília, então, realiza seu sonho de ir
embora para Recife, mas vai descobrindo aos poucos que, no fim das contas, seu
sonho não se realizou como gostaria. E, ainda, precisa manter bem escondido seu
maior segredo, agora que frequenta um círculo social totalmente distinto do
seu: ser irmã da maior cangaceira e bandida que o Nordeste já viu.
Enquanto
isso, tanto o mundo quanto o Brasil vêm passando por profundas mudanças, tanto
supostamente boas quanto ruins, que vão afetar a todos, para o bem ou para o
mal.
___________________
O livro é
narrado em terceira pessoa. Apesar disso, cada capítulo é destinado a uma das
irmãs. Para que o leitor fique bem contextualizado, algumas vezes o narrador
faz flashbacks e,
dentro do mesmo subcapítulo, volta a narrar o que está acontecendo no presente.
Pode parecer confuso explicando assim, mas, em minha opinião, não é. Ficou tudo
muito claro e todas as pontas que vão sendo deixadas ao longo da história foram
devidamente amarradas em determinado momento.
As irmãs e a
tia Sofia são mulheres fortes, guerreiras, batalhadoras, pela própria
sobrevivência e pela do próximo. São justas, maduras, ante o sofrimento que
passam tanto no sertão quanto depois de se separarem.
Emília, que
poderia muito bem ser aquela protagonista chata, imatura, se torna uma pessoa
tão forte e importante para a história em si que não tem como não se encantar e
torcer por ela.
Luzia, aos
olhos de alguns, pode parecer uma vilã por ser uma fora da lei. Aos meus olhos,
ela é uma lutadora. O que me fez admirar a "Costureira" foi sua
trajetória de, numa época em que as mulheres eram tratadas como nada, torna-se
comandante de um grupo de cangaceiros conhecidos por todo o Nordeste e comandar
ataques àqueles que faziam o mal para os fracos, desafiando o governo de
Getúlio Vargas, que queria construir a via transnordestina, enquanto faltava
alimentação, educação e outros recursos mais úteis ao povo nordestino.
A família
Coelho, do marido de Emília, são todos desprezíveis para mim. A começar por
Degas, que com todo seu charme tirou Emília do sertão, com o pretexto de que
assim ela salvaria sua vida, e depois se revelou um marido distante e com
outras intenções para com a esposa. Ele, obviamente, tinha os seus segredos,
mas usava o de Emília (em relação à irmã cangaceira) para manter um casamento
de aparências e para que ela abaixasse a cabeça para tudo de errado que ele
fazia. Dr. Duarte, pai de Degas, aparenta ser um senhor bonachão, mas não se
engane com ele: os assuntos políticos e a mania de medir o crânio de todas as
pessoas fazia com que ele não medisse esforços para alcançar tudo o que queria.
Sua maior ambição era medir o crânio da Costureira e do Carcará. Dona Dulce é a
mais antipática de todos e já está no meu muro de chapisco do ano (a lista só
cresce). Além de ser sempre muito cruel com Emília, é a mulher mais machista
que se possa imaginar (claro, era outra época, mas mesmo assim!).
São 576
longas páginas de história. Esse é, na minha visão, o único ponto negativo do
livro. A fonte é miúda e as folhas não são das mais finas. Assim, ainda que a
história tenha sido excelente ao longo de todo o livro, a leitura é bastante
morosa. É contraditório à primeira vista, por isso acho bom esclarecer que o
texto em si não é o culpado. A diagramação, em geral, é a verdadeira culpada.
O ponto mais
positivo, que merece um parágrafo especial, é o contexto histórico,
principalmente político, em que o livro está inserido, embora a história seja
fictícia. A autora não se limita a contar a história de duas irmãs nordestinas
e focar no sofrimento de um casamento mal-sucedido e uma cangaceira correndo
perigo no sertão. Vai muito além disso. A história se passa no período, como já
disse antes, de mudanças significativas e, em alguns casos, irreversíveis, no
Brasil e no mundo. Imaginando uma linha do tempo, a história perpassa a época
do Coronelismo, República Velha, quebra da Bolsa de Nova York, Revolução de
1930 e Era Vargas.
Um dos
pontos históricos que mais me chamou atenção no livro foram os
"campos" criados para alocar os flagelados da seca
nordestina, ante o volume muito grande de pessoas que deixavam o interior e
partiam rumo à capital. Para evitar que essas pessoas ocupassem a capital, os
campos foram criados para que ali vivessem aquelas pessoas recebendo doações e
“ajudas” do governo.
Há vários
outros pontos que retratam mudanças na sociedade da época, como o avanço do
voto, que passa a ser secreto e permitido a mulheres alfabetizadas.
Além de todo
esse contexto histórico, o livro foca no empoderamento feminino. Contra todo o
machismo e os costumes da época, vemos personagens femininas lutando para ter
voz, para serem ouvidas, para serem alguém. Às vezes, fazendo isso de forma
discreta, outras vezes, de forma escancarada enfrentando aqueles que ousassem
impedi-las de realizar aquilo que desejavam e tirando proveito de situações
que, se vistas por outros olhos, poderiam, na verdade, lhes serem prejudiciais.
Muito misteriosas as minhas palavras? Leiam o livro!! Vocês vão entender o que
estou dizendo!
O final do
livro não me surpreendeu, talvez por já ter assistido à minissérie, mas me
senti mais satisfeita com o final do livro porque fica mais explícito o rumo
que deu Emília à sua vida.
Em um breve
comparativo com a minissérie, achei, de forma geral, muito fiel. Contudo, ficou
evidente o pouco destaque ao contexto histórico e o foco na história de vida
das irmãs. Além disso, a personagem de Emília, na minissérie, não faz jus à
Emília do livro, e garanto que não foi por culpa da atuação da Marjorie
Estiano. Pelo contrário! Sua atuação foi totalmente à altura da personagem, na
minha opinião. Contudo, a grande mulher que Emília é no livro não é a mesma que
vemos na minissérie. A impressão que temos é de uma mulher do interior,
insegura, que só pensa em arrumar um marido e ir pra cidade grande ser uma boa
esposa. Os traços de força da personagem na minissérie são muito mais sutis que
no livro. No mais, algumas alterações feitas em relação ao livro foram necessárias
principalmente para encaixar o contexto nesse novo foco.
Numa breve
pesquisa feita na página sobre a autora e sua obra (que você pode acessar
clicando aqui), bem como na orelha da
contracapa do livro, descobrimos que Frances de Pontes Peebles nasceu em
Recife, Pernambuco, mas foi criada em Miami, na Flórida. A família dela tem uma
fazenda em Taquaritinga do Norte (local onde se passa a maior parte da história
do livro) e que atualmente é administrada pela autora.
O livro
foi lançado primeiro lá fora, para depois ser traduzido para o português e
lançado inicialmente com o nome de "A costureira e o cangaceiro". Foi
traduzido, ao todo, para 9 idiomas, e, no caso da “versão brasileira”, houve um
corte de quase 100 páginas, segundo a autora. UAU!
Bom, depois
do tanto que escrevi encerro dizendo que indico esse livro para todo mundo!
Quisera eu ser professora de Literatura para propor ao professor de História um
trabalho interdisciplinar sobre esse livro. Poderia, facilmente, ser usado nas
escolas, como também foi o caso do outro livro que resenhei aqui: Outros Cantos. Se você curte livros
nacionais, principalmente aqueles que nos remetem à história do nosso país,
fica aí a minha dica. Leiam!
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