Não me abandone jamais - Kazuo Ishiguro
>> quinta-feira, 13 de setembro de 2012
ISHIGURO, Kazuo. Não me abandone jamais. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005. 344p. Título original: Never let me go.
“E assim é que você já está na expectativa, mesmo que não saiba
bem disso. Está à espera do momento de dar-se conta de que de fato é diferente
deles; de que existem pessoas lá fora, como Madame, que não odeiam você, nem
lhe desejam nenhum mal, mas que ainda assim estremecem só de pensar em você –
de lembrar como você veio a este mundo e porquê -, e que sentem pavor diante da
simples possibilidade de que sua mão roce a mão deles. É um momento gélido,
esse, o da primeira vez em que você se vê através dos olhos de uma pessoa
assim.” p.50
Dos livros que li nos últimos tempos, este
é o livro mais difícil de resenhar, uma história contada de forma suave, mas
que em doces palavras, descreve uma realidade perturbadora. Que questiona
alguns conceitos arraigados e quebra tabus. Um romance com forma de drama, uma
distopia com um quê de filosofia e religião. Não sei nem se o livro deve ser
visto apenas como uma historia de ficção, pois o que seria considerado spoiler
em qualquer livro – como a própria sinopse
do Skoob-, é o cerne para qualquer discussão sobre a obra. Hoje vou
tentar contar para vocês as minhas impressões sobre Não me abandone jamais do autor japonês Kazuo Ishiguro.
Kathy
H., hoje com 31 anos, é uma “cuidadora” há 11
anos. E agora, prestes a se tornar uma “doadora” começa a refletir sobre sua
vida. Relembrando seu passado de forma aleatória ela nos conta sua vida
desde criança, quando ainda vivia no internato Hailsham – no interior da
Inglaterra, ao lado de seus melhores amigos Tommy e Ruth.
É com alegria e saudade que ela narra ao
leitor suas aventuras de criança, sua escola rígida, mas cheia de diversão. Ela
conta como todos os alunos que viviam ali eram especiais, mesmo sem entender
exatamente o porquê, como viviam isolados do mundo e como as poucas pessoas de
fora que apareciam por lá, olhavam diferente para eles, quase com temor.
Como a Madame, que aparecia muitas vezes
na escola e levava para sua galeria os melhores trabalhos artísticos dos
alunos. Nenhum deles sabiam porque faziam os trabalhos ou o quê ela faria com
eles, mas era uma grande honra ter um trabalho escolhido.
Kathy, Tommy e Ruth cresceram, ela sempre
se preocupando com ele, e Ruth como namorada de Tommy, embora muitas vezes com
alguns conflitos. Mas os sentimentos daquelas crianças eram diferentes, eles
cresciam sabendo o que iriam se tornar, não tinham sonhos ou desejos, apenas a
certeza do futuro que viria a seguir. Acredito que Kathy também não tinha medo,
apenas a vontade de contar a sua historia, antes da primeira doação.
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Não me abandone jamais tem um enredo distópico, mas diferente de qualquer livro do
estilo que você já tenha lido. O mundo onde estamos não é descrito, nem sua
ideologia política ou seu lugar no tempo espaço. Mas o leitor sabe que isto se
passa no futuro, um futuro não muito distante e não impossível de se acontecer.
Pelos olhos de Kathy vemos como a vida
daquelas crianças é diferente, elas não contam sobre seus pais, famílias ou desejos.
Não sentem inveja, não brigam entre si, fazem apenas as brincadeiras esperadas
de qualquer criança normal. O tempo todo sabemos que elas são diferentes, mas
não sabemos como. E quando descobrimos, o livro torna-se incrivelmente triste e
desolador. Confesso que custei um pouco para entender o livro, até a metade do
livro eu questionava o enredo e esperava mais da trama, até perceber que não
foi esta a intenção do autor, ele nunca quis escrever um livro de ação cheio de reviravoltas.
A partir daqui não consigo mais falar do
livro sem contar o X da questão, como eu disse, ainda não sei se isto seria ou
não um spoiler. A sinopse do skoob fala claramente sobre o assunto, mas
nos dados do livro - orelhas e sinopse da capa - não é mencionado. [AVISO DE SPOILER] Todos os alunos de
Hailsham são clones, criados para terem uma vida “normal” até a idade adulta,
onde começam a fazer uma série de doação de órgãos, até que o corpo não resiste
mais e morre. Entre as cirurgias eles são tratados pelos cuidadores, que é a
função da protagonista.
Kathy em nenhum momento quer lutar contra
o sistema, assim como nenhum dos outros personagens. Ela tenta nos contar como
tudo aquilo era um grande mistério, como eles cresciam sem saber ao certo o que
iriam se tornar. O autor questiona principalmente se aquelas crianças, criadas
em laboratório com o único fim de doar seus órgãos teriam alma, poderiam ser
considerados humanos.
O que faz de você uma pessoa? Conhecendo
Kathy, Ruth e Tommy, você não terá dúvida que eles são sim pessoas, que amam e
sofrem. E ao se descobrir isso, tudo se torna incrivelmente triste, é como se
não houvesse amanhã. É como não ter pelo que esperar, não ter porque sonhar ou
como lutar por nada. Seu destino está ali, escrito, seu fim está ali, bem perto
e previsível. Eles não podem ter filhos, o sexo é algo físico que não é
encorajado. Eles nascem, crescem, fazem amigos e se divertem, fazem 18 anos,
começam a doar e morrem. Com tudo que se fala hoje em dia sobre clonagem, você já conseguiu pensar em um banco de órgãos humanos?
A narrativa de Kathy não é linear, ela
passeia pelo passado e nos conta suas memórias. Seria uma historia simples, se
tudo nela não fosse fascinante. Se a narrativa não fosse tão sensível e tão
pura, as piores cenas são descritas sem nenhuma maldade. Em nenhum momento eu
amei e pensei “nossa este é um dos melhores do ano”, mas a todo momento eu
pensava “eu nunca li nada assim” e eu sentia a tristeza de Kathy, mais ainda, eu me sentia muito triste por todos
eles.
O livro foi adaptado para o cinema em 2011, Never let me go tem direção de Mark
Romanek e no elenco Keira Knightley, Carey Mulligan, Andrew Garfield, Charlotte
Rampling, Sally Hawkins, Domhnall Gleeson, Charlie Rowe, Andrea Riseborough,
Ella Purnell. Ainda não assisti ao filme, mas agora preciso dele urgentemente!
Não
me abandone jamais é um livro principalmente, reflexivo. É uma
leitura que irá mexer com você, e de que maneira, só o próprio leitor poderá
dizer. Não é um livro para se criar grande expectativa no quesito “historia de
ficção”, mas é uma obra capaz de tocar, de fazer pensar. Para mim o livro requer
maturidade, leia se achar que a resenha se adéqua a você. J
Avaliação (1 a 5):