Sujeitos sem pátria
>> sábado, 5 de março de 2011
Nesta semana, duas matérias publicadas no Estado de Minas me fizeram refletir sobre como algumas pessoas são convertidas em estrangeiras no seu próprio país, sujeitos sem pátria.
Uma delas, com o título "Execução de travesti na Afonso Pena escancara problemas da Zona Sul de BH", fala de como é desgastante para os moradores, de área tão nobre da cidade, dividirem o espaço com a prostituição e a violência. Como é ultrajante para as famílias testemunharem, madrugada adentro, da janela dos luxuosos apartamentos, a algazarra comandada pelos travestis. A reportagem não trata do problema da marginalidade a que os travestis estão sujeitos, da falta de políticas públicas para esta categoria, da discriminação que os obriga a viverem à margem. Este não é o problema. Problema é que o travesti foi executado na Zona Sul. Está aí a produção de invisibilidade.
A outra manchete diz: “Jovens transformam Praça do Papa em baile funk durante a madrugada”, com cena de menores, consumindo drogas e dançando em cima de carrocerias. Uma reportagem preocupada com a situação dos meninos? Não! O absurdo está no fato dos moradores de um dos principais cartões-postais da cidade terem o seu conforto interrompido por tanta baderna. Uma menina enchendo a cara e reproduzindo poses eróticas em cima de um carro, cercada de marmanjos, não é o problema, o problema é ela estar na Praça do Papa. A matéria quase diz que se ela não saísse de onde veio, não haveria problema. Essa postura alimenta uma ideologia.
Desigualdade socioeconômica, falta de acesso ao lazer, à educação e ao trabalho digno são uma constante na vida da maior parte destes jovens que saem da periferia e vão para Zona Sul para se divertir ou até para se prostituir.
Neste cenário, falar de lazer pode parecer estranho. Mas não é. Trata-se de um direito. Ta lá, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição brasileira. O problema é que é um direito que poucos jovens da periferia conseguem exercer. Mas a reportagem não menciona isso. O acesso aos espaços políticos, aos bens sociais, à produção do pensamento, à riqueza, tem sido determinado ainda pela lógica escravocrata.
A construção de uma identidade nacional se dá sob as mais variadas formas de expressão. Uma delas é a exercida pelo jornalismo. A comunicação é um espaço de identidade e auto-reconhecimento. Todo ato comunicativo está relacionado com a leitura que temos de nós mesmos. A comunicação é útil quando contribui para entender por que somos como somos.
Como essa rapaziada vive? Onde estuda? Como é que é a convivência familiar deles? Como o pai fala com filho, com o irmão? Eles têm pai em casa? Quanto essas pessoas passam por situações humilhantes nas filas dos hospitais, dos ônibus lotados?
O espaço da nação pode ser visto não somente como a delimitação de fronteiras externas, mas como um espaço marcado fundamentalmente por limites internos, como aqueles vividos por Irena, em Apátrida. Os limites da nação não estão em suas fronteiras, mas no seu próprio olhar.
Fontes:
AYER, Flávia; FERREIRA, Pedro. Execução de travesti na Afonso Pena escancara problemas da Zona Sul de BH. Jornal Estado de Minas. 2011 mar 03; Caderno Gerais. Disponível em: http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2011/03/03/interna_gerais,213162/execucao-de-travesti-na-afonso-pena-escancara-problemas-da-zona-sul-de-bh.shtml
BRAGA, Ernesto. Jovens transformam Praça do Papa em baile funk durante a madrugada. Jornal Estado de Minas. 2011 fev 27; Caderno Gerais. Disponível em: http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2011/02/27/interna_gerais,212361/jovens-transformam-praca-do-papa-em-baile-funk-durante-a-madrugada.shtml