Véspera – Carla Madeira
>> sexta-feira, 18 de março de 2022
MADEIRA, Carla. Véspera. Rio
de Janeiro: Editora Record, 2021. 280p.
“Foi exatamente
isso o que Custódia fez: reduziu o funcionamento do mundo ao seu ponto de
vista. Um esforço descomunal para que os meninos se tornassem iguais,
indistinguíveis, e assim se tornassem um só: Abel. As mesmas roupas, o mesmo
quarto, os mesmos brinquedos compartilhados e o mesmo nome. Um nome ‘Abel’ em
dois corpinhos, que um dia seriam dois desejos e, depois disso... sabe-se lá
quanta bagunça. Mas Custódia não antecipava o que viria pela frente... Urgente
era o que estava diante dela: a lambança do bêbado insuportável que ela decidiu
limpar pondo uma fraldinha nos olhos de todos! Seria razoável, contudo, não
julgá-la apressadamente. Que mulher religiosa dormiria tranquila tendo um filho
chamado Caim e outro Abel? Nem mesmo um ateu convicto passaria por debaixo
dessa escada assobiando.” p. 35
Caim e Abel: a primeira história
de abandono. Em um encontro virtual com a autora de Véspera, a mineira Carla
Madeira, que vem conquistando leitores nessa frutífera era da literatura
brasileira, apresenta assim este que é seu terceiro livro. Uma justificativa
capaz de ser um forte alicerce a um enredo coeso, a autora busca inspiração
nessa famosa (e temida) história bíblica para introduzir e nortear os
acontecimentos trágicos narrados no livro.
Leio “Véspera” recém saída das
turbulentas águas batismais de “Tudo É Rio” (cuja resenha da Evelyn vocês
conferem AQUI) e me encontro completamente embriagada pela escrita de Madeira.
A autora é corajosa, com texto direto, descrições poderosas e extremamente
significativas. Assim como a obra de estreia, “Véspera” é aquele livro de
terminar com diversas marcações, cheio de frases de efeito para agradar os
leitores ansiosos por reflexões decorrentes de um livro bem escrito. Dou aqui
um exemplo, quando a autora descreve o desespero de uma mãe que não consegue
encontrar o filho em um espaço público como “(...) uma carne desesperada girando
sobre si mesma” (p. 17).
Este livro nos traz Carla
Madeira mais amadurecida e um pouco mais contida, mas sem perder suas
características. Se “Tudo é Rio” foi um sonoro e estridente tapa na cara,
“Véspera” é um silencioso, mas mortal soco no estômago. Aqui, temos duas
histórias que se conversam, uma no presente e a outra em um passado não tão
distante. De cara somos apresentados à Vedina, uma mãe que se encontra no
limite do desespero a ponto de perder o filho em uma rua pública, desespero
também aumentado pelo arrependimento que se segue à situação. Os parágrafos
dedicados ao sofrimento presente da mulher são curtos e intercalados com a
história que ocupa a grande parte do livro: aquela dos gêmeos Caim e Abel.
Custódia, mulher batalhadora e
religiosa, nem sempre está em consonância com seu marido, Antunes, após muito
tentar ganha dois meninos, gêmeos idênticos. A princípio chamados de Pedro e
Paulo, Antunes após uma bebedeira registra os meninos como Caim e Abel, uma
tentativa de provocar a esposa devota. Esse ato trouxe inúmeras consequências e
Custódia tentou ao máximo evitar o momento de escolher qual de seus filhos
seria Caim, sempre receosa de atiçar uma rivalidade entre os irmãos, que ali
estavam marcados pelo estigma dos nomes e do que ela considera ser a força
inevitável do destino.
O grande foco da narrativa é o
período escolar, onde um dos irmãos claramente vai melhor do que o outro,
gerando uma separação inevitável e triste para a mãe aceitar. A partir daquele
momento, Caim e Abel vão vivendo suas vidas e ganhando personalidades próprias,
mas seriam eles aptos a escapar do estigma que lhes foi dado com a certidão de
nascimento? Ao intercalar a narrativa dos irmãos com o desesperador presente de
Vedina, Carla Madeira habilidosamente deixa duas perguntas: Como se chega ao
extremo? As ações são justificáveis?
“O puçá da
vida, com sua rede inescapável, baila à espreita... Entre gestos, olhares, palavras,
vazios, intensidades e, súbito, como se fossem borboletas, recolhe a véspera de
uma dor, o desamparo sem palavras, a sutil alegria, a faísca cadente, o
assombro fugido e o desejo... E, assim, aprisiona o tempo e o faz corpo
marcado.” p. 226
Eu pessoalmente gostei do
livro. A linguagem da autora é uma que me cativa, uma mineiridade ousada nos
termos de uma linguagem universal. Espero que seu segundo livro, A Natureza da
Mordida, seja lançado em breve, pois gostaria muito de conhecer o trabalho que
veio intermediando dois livros bastante diferentes, Tudo É Rio e Véspera.
Os livros são diferentes, mas
conseguimos identificar o estilo narrativo da autora. Ela tem uma linguagem
forte, marcante, e gosta de um enredo que desenvolve bem e atiça a curiosidade
do leitor para no final completamente mudar o rumo da trama. Ela consegue um
bom impacto, e tenho curiosidade de saber o que mais ela tem a trazer. Tudo É
Rio foi um livro mais direto, curto e grosso, menos velado. O tal tapa na cara.
Já Véspera foi se tecendo nas nuances, nas vírgulas, nos espaços, e quando o
golpe veio, foi o tal do soco mortal na barriga. Remetendo à capa, foi o vulcão
calmamente se movimentando para entrar em uma erupção mortal.
Para mim, Tudo É Rio foi uma
experiência literária melhor. Eu gosto do barulho do tapa estralado, do golpe
que avisa que vem. As nuances de Véspera foram um pouco sutis demais para meu
gosto de leitora, e algumas coisas só percebi semanas após terminar o livro, e
após conversar com amigas sobre o desenvolvimento da história. E olha, livros
assim são espetaculares e excelentes escolhas para clubes do livro, pois
despertam debates calorosos e discussões preciosíssimas. E ele vale a pena ser
lido e discutido na medida que vamos marcando o nome de Carla Madeira na
história da literatura contemporânea brasileira. E que venha a mordida!
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Avaliação (1 a 5):