A História de Shuggie Bain – Douglas Stuart

>>  segunda-feira, 17 de janeiro de 2022


STUART, Douglas. A História de Shuggie Bain. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020. 528p. Título Original: Shuggie Bain.
 
"Seu corpo pendia da lateral da cama, e, pelo ângulo esquisito, Shuggie soube que a bebida a tinha girado a noite inteira. Ele virou a cabeça da mãe para o lado para impedir que se asfixiasse com o vômito que lhe vinha à boca. Depois botou o balde do esfregão do lado da cama e com delicadeza abriu o zíper do vestido creme e o fecho do sutiã. Teria tirado os sapatos, mas ela já estava descalça. As pernas estavam brancas e feias sem a meia-calça preta que usava sempre. Havia hematomas novos nas coxas pálidas. Shuggie arrumou as três canecas: uma com água da pia para umedecer os arranhões da garganta, uma com leite para forrar o estômago irritado e uma terceira com uma mistura dos restos chocos da Special Brew e das cervejas que tinha catado pela casa e mexido com um garfo. Sabia que seria o primeiro que ela pegaria, o que estancaria o choro de seus ossos." p. 243
 
A História de Shuggie Bain, livro de estreia do escocês Douglas Stuart, foi o primeiro livro que li em 2022 e já ouso dizer que talvez ele tenha me estragado para todos os outros que virão ao longo deste ano. Já tenho um carinho e apego por esse livro como poucos antes. A leitura me marcou profundamente e eu precisei de alguns dias só para absorver aquilo que eu li e vivi. Um livro que me atraiu por se situar em uma cidade e período que atualmente despertam a minha curiosidade: a crise social do Tatcherismo no Reino Unido, especialmente com o fechamento das minas de carvão. Isso na verdade é o pano de fundo para contar a história do garoto Shuggie Bain, que mora em um dos muitos conjuntos habitacionais populares de Glasgow com sua mãe alcóolatra, Agnes.
 
O mais interessante é que o livro com o nome “A História de Shuggie Bain” é muito mais do que a simples história do dito Shuggie Bain. Sim, ele começa seu relato em 1992 brevemente mostrando um Shuggie no início da vida adulta, mas logo somos levados para a narrativa central do livro, os anos de 1981 e 1982 em Glasgow, quando Shuggie tinha apenas 8 e 9 anos. Ao contar aquela que seria a história do menino, encontramos outro personagem principal, aquela que domina toda a história e narrativa: Agnes Bain, sua mãe. Quando comecei a ler pensei que o livro seguiria uma narrativa linear bibliográfica, mostrando um pouco do passado da família para depois focar no garoto que leva o nome da história. Não foi isso que aconteceu: a narrativa nos faz descobrir que a história do Shuggie de 1992 é a que necessariamente passa por sua mãe, quem ela foi, o que ela fazia e como ela era, mas especialmente pelo amor incondicional e muitas vezes doentio que o menino sentia por ela. Shuggie é o que é por causa de sua mãe, muito além do alcoolismo que viria a consumi-la, mas também da moça de beleza marcante, vaidosa, sempre de cabeça em pé mesmo vivendo no pior lugar para se viver e diante de tanta adversidade.
 
Agnes é uma linda mulher de origem católica (é incrível como a religião é importante na Escócia de 1980. Talvez até hoje) mãe de 3 filhos: Catherine e Leek, filhos do seu casamento com um homem bom e católico, mas que não dava a Agnes a “diversão” que ela ansiava, e o pequeno Hugh “Shuggie” Bain, filho do segundo “marido”, Hugh “Shug” Bain. Coloco a palavra “marido” entre aspas por que não sei se os dois chegaram de fato a casar. Sim, Agnes assumiu o sobrenome e Shug adotou seus dois primeiros filhos, mas em conversas ela chega a dizer que era divorciada de um marido, então perdi um pouco a lógica. O fato é que Shug é taxista, trabalhando nas noites de Glasgow e nutrindo um relacionamento muito abusivo, na falta de palavras que descrevam algo ainda pior. Em 1981 a história se passa em Sighthill, com a família morando com os pais de Agnes, um lugar pobre mas que detinha uma certa dignidade. Agnes já bebia e tinha suas crises de raiva e ciúmes descontrolados, o que era tolerado por Shug. Na verdade, esse relacionamento trazia o pior de cada um: ela bebia mais e ele se acomodava no papel de macho alfa provedor e galanteador. Aqui, quero trazer um trecho que muito me marcou:
 
“O caminho até o hospital antigo era rápido àquela hora da noite. A Enfermaria Real era onde iam parar as facadas dos torcedores de futebol e a violência doméstica dos dias de pensão do governo. Stobhill era onde Glasgow tinha nascido e onde Glasgow morria. Agora uma menina tímida estava parada ali, sob a luz do saguão, usando o avental azul de faxineira. Ela agarrava as coxas flácidas e as apertava e esticava, deixando-as lisas e retas. A maquiagem tinha se espalhado com o frio e as lágrimas, e ele via os círculos de guimbas queimadas em seus pés, como se o estivesse esperando no frio o intervalo inteiro. Shug sorriu. Ela só tinha vinte e quatro anos e já era capacho dele.” (p. 60-61)
 
Ao descobrir quem é Shug Bain e seu relacionamento com Agnes, fui entendendo o estilo narrativo. Esperava um drama pesado, e realmente consegui isso, mas com um porém. Ao contrário de diversas obras que classificamos como drama, há algo diferente aqui, algo que simplesmente me nocauteou: a resignação. Nesta parte percebi que o livro seria inteiro assim, descrever “a vida como ela é”. Difícil, dura, sem perspectivas de melhoras, em um lugar inóspito, com muitos julgamentos e abusos vindo para todos os lados. Não há nenhum momento de clímax – a história não se direciona para um grande acontecimento que marca e muda tudo e todos. A história de Shuggie Bain é a história de milhares de pessoas ali em Glasgow, que não precisam de heróis ou vilões, grandes acontecimentos ou grandes desastres para serem o que são. É acordar e dormir no meio da escória (literalmente), enquanto as doenças decorrentes do meio vão aflorando até tomar nosso amor, nossa esperança, nossa vida. E, ao realizar isso, eu fiquei mal. Passei a leitura sentindo um soco no estômago que me deixava atônita e inapta para outros livros e histórias. Aos poucos eu também fui acostumando com as condições deploráveis da vida e da sociedade e aceitando que “é assim e pronto acabou”. E é por essa razão que eu aviso que esse livro não é para quem está passando por momentos difíceis, pois traz a tona inúmeros gatilhos. É uma história duríssima, mas brilhantemente escrita. Só temos que estar fortes para lê-la.
 
Mas e qual seria a história de Shuggie Bain? O menino é diferente dos outros de sua idade. Isso não é claro no início da trama, vamos descobrindo as peculiaridades de sua pessoa no decorrer da trama. Muito se fala em “normal”, e Shuggie não se encaixa no normal de Pithead, um conjunto habitacional com pessoas vivendo de auxílio governamental após o fechamento da mina de carvão, para onde ele vai com a mãe e os irmãos a partir de 1982.  Me lembro de um diálogo entre o menino e seu irmão mais velho, Leek (um lutador e uma baita pessoa, diga-se de passagem), onde ele tenta fazer com que o irmão copiasse os modos e jeitos das crianças de sua idade:
 
“- Estou tentando, Leek. Tento o tempo inteiro. Esses meninos deixam a blusa pra fora da calça como se não tivessem vergonha, e só fazem chutar aquela porcaria daquele balão de água de um lado pro outro. Já vi eles enfiarem o dedo na parte de trás da calça e cheirar. É tão... É tão... – Ele procurou a palavra – Baixo.
Leek o soltou.
- Se quiser sobreviver, vai ter que se esforçar mais, Shuggie.
- Como?
- Bom, para começo de conversa, nunca mais diga “baixo”. Meninos não devem falar que nem senhoras. – Leek cuspiu um chumaço de catarro. – E você devia prestar atenção no seu jeito de andar. Tentar não ser tão afeminado. Isso põe um alvo no meio das tuas costas.” 
p. 186
 
Mais que ser um garoto “afeminado”, que gosta de se vestir como um mafioso com terno e gravata, fascinado com bonecas e cabelos, Shuggie ama sua mãe. E a força desse amor é o que guia a história. Quando Agnes mergulha ainda mais na bebida, Shuggie, com menos de 10 anos, deixa de ir na escola para cuidar das crises de abstinência ou dos reflexos de uma noite de bebedeira. E isso dói, dói como não há um abraço disponível ou alguém decente para ajudar. Mas como pedir ajuda quando estão todos no mesmo buraco? Os três filhos de Agnes tiveram respostas diferentes à criação e ao problema da mãe, mas é em Shuggie que acabamos pensando mais e focando mais, talvez justamente por ele não ser “normal”. Mas espero que um dia Shuggie descubra que o normal não é interessante!
 
Para terminar, quero apenas ressaltar o quão marcante é a personagem Agnes Bain. Tão marcante que um dia certamente dará um prêmio para a atriz que ficar responsável por dar vida nas telas. Agnes é orgulhosa e jamais abre mão da sua aparência e manter a cabeça em pé, mesmo que acabe toda as noites largada na sarjeta fruto da bebida. Lembro especificamente de uma passagem em que ela está em casa com Shuggie dançando, apenas para o menino perceber que os vizinhos olham pela janela com muitas risadas. Agnes ali dá o conselho que certamente o filho leva para a vida: Continue dançando e não ligue, “você ergue a cabeça e. Dá. Tudo. De. Si.” (p. 329). E essa é uma boa lição para se tirar disso tudo!

Adicione ao seu Skoob!


Compre na Amazon: A história de Shuggie Bain    



Avaliação (1 a 5):



Postar um comentário

  © Viagem Literária - Blogger Template by EMPORIUM DIGITAL

TOPO