STUART, Douglas. A História de Shuggie Bain. Rio de
Janeiro: Editora Intrínseca, 2020. 528p. Título Original: Shuggie Bain.
"Seu corpo pendia da lateral
da cama, e, pelo ângulo esquisito, Shuggie soube que a bebida a tinha girado a
noite inteira. Ele virou a cabeça da mãe para o lado para impedir que se
asfixiasse com o vômito que lhe vinha à boca. Depois botou o balde do esfregão
do lado da cama e com delicadeza abriu o zíper do vestido creme e o fecho do
sutiã. Teria tirado os sapatos, mas ela já estava descalça. As pernas estavam
brancas e feias sem a meia-calça preta que usava sempre. Havia hematomas novos
nas coxas pálidas. Shuggie arrumou as três canecas: uma com água da pia para
umedecer os arranhões da garganta, uma com leite para forrar o estômago
irritado e uma terceira com uma mistura dos restos chocos da Special Brew e das
cervejas que tinha catado pela casa e mexido com um garfo. Sabia que seria o
primeiro que ela pegaria, o que estancaria o choro de seus ossos." p. 243
A História de Shuggie Bain,
livro de estreia do escocês Douglas Stuart, foi o primeiro livro que li em 2022
e já ouso dizer que talvez ele tenha me estragado para todos os outros que
virão ao longo deste ano. Já tenho um carinho e apego por esse livro como
poucos antes. A leitura me marcou profundamente e eu precisei de alguns dias só
para absorver aquilo que eu li e vivi. Um livro que me atraiu por se situar em
uma cidade e período que atualmente despertam a minha curiosidade: a crise social
do Tatcherismo no Reino Unido, especialmente com o fechamento das minas de
carvão. Isso na verdade é o pano de fundo para contar a história do garoto
Shuggie Bain, que mora em um dos muitos conjuntos habitacionais populares de
Glasgow com sua mãe alcóolatra, Agnes.
O mais interessante é que o
livro com o nome “A História de Shuggie Bain” é muito mais do que a simples
história do dito Shuggie Bain. Sim, ele começa seu relato em 1992 brevemente
mostrando um Shuggie no início da vida adulta, mas logo somos levados para a
narrativa central do livro, os anos de 1981 e 1982 em Glasgow, quando Shuggie
tinha apenas 8 e 9 anos. Ao contar aquela que seria a história do menino, encontramos
outro personagem principal, aquela que domina toda a história e narrativa: Agnes
Bain, sua mãe. Quando comecei a ler pensei que o livro seguiria uma narrativa
linear bibliográfica, mostrando um pouco do passado da família para depois focar
no garoto que leva o nome da história. Não foi isso que aconteceu: a narrativa
nos faz descobrir que a história do Shuggie de 1992 é a que necessariamente
passa por sua mãe, quem ela foi, o que ela fazia e como ela era, mas
especialmente pelo amor incondicional e muitas vezes doentio que o menino
sentia por ela. Shuggie é o que é por causa de sua mãe, muito além do
alcoolismo que viria a consumi-la, mas também da moça de beleza marcante,
vaidosa, sempre de cabeça em pé mesmo vivendo no pior lugar para se viver e
diante de tanta adversidade.
Agnes é uma linda mulher de
origem católica (é incrível como a religião é importante na Escócia de 1980.
Talvez até hoje) mãe de 3 filhos: Catherine e Leek, filhos do seu casamento com
um homem bom e católico, mas que não dava a Agnes a “diversão” que ela ansiava,
e o pequeno Hugh “Shuggie” Bain, filho do segundo “marido”, Hugh “Shug” Bain. Coloco
a palavra “marido” entre aspas por que não sei se os dois chegaram de fato a
casar. Sim, Agnes assumiu o sobrenome e Shug adotou seus dois primeiros filhos,
mas em conversas ela chega a dizer que era divorciada de um marido, então perdi
um pouco a lógica. O fato é que Shug é taxista, trabalhando nas noites de
Glasgow e nutrindo um relacionamento muito abusivo, na falta de palavras que
descrevam algo ainda pior. Em 1981 a história se passa em Sighthill, com a
família morando com os pais de Agnes, um lugar pobre mas que detinha uma certa
dignidade. Agnes já bebia e tinha suas crises de raiva e ciúmes descontrolados,
o que era tolerado por Shug. Na verdade, esse relacionamento trazia o pior de
cada um: ela bebia mais e ele se acomodava no papel de macho alfa provedor e galanteador.
Aqui, quero trazer um trecho que muito me marcou:
“O caminho até o hospital antigo era rápido àquela
hora da noite. A Enfermaria Real era onde iam parar as facadas dos torcedores
de futebol e a violência doméstica dos dias de pensão do governo. Stobhill era
onde Glasgow tinha nascido e onde Glasgow morria. Agora uma menina tímida
estava parada ali, sob a luz do saguão, usando o avental azul de faxineira. Ela
agarrava as coxas flácidas e as apertava e esticava, deixando-as lisas e retas.
A maquiagem tinha se espalhado com o frio e as lágrimas, e ele via os círculos
de guimbas queimadas em seus pés, como se o estivesse esperando no frio o
intervalo inteiro. Shug sorriu. Ela só tinha vinte e quatro anos e já era
capacho dele.” (p. 60-61)
Ao descobrir quem é Shug Bain
e seu relacionamento com Agnes, fui entendendo o estilo narrativo. Esperava um drama pesado, e
realmente consegui isso, mas com um porém. Ao contrário de diversas obras que classificamos
como drama, há algo diferente aqui, algo que simplesmente me nocauteou: a
resignação. Nesta parte percebi que o livro seria inteiro assim, descrever “a
vida como ela é”. Difícil, dura, sem perspectivas de melhoras, em um lugar
inóspito, com muitos julgamentos e abusos vindo para todos os lados. Não há
nenhum momento de clímax – a história não se direciona para um grande acontecimento
que marca e muda tudo e todos. A história de Shuggie Bain é a história de
milhares de pessoas ali em Glasgow, que não precisam de heróis ou vilões,
grandes acontecimentos ou grandes desastres para serem o que são. É acordar e
dormir no meio da escória (literalmente), enquanto as doenças decorrentes do
meio vão aflorando até tomar nosso amor, nossa esperança, nossa vida. E, ao
realizar isso, eu fiquei mal. Passei a leitura sentindo um soco no estômago que
me deixava atônita e inapta para outros livros e histórias. Aos poucos eu
também fui acostumando com as condições deploráveis da vida e da sociedade e
aceitando que “é assim e pronto acabou”. E é por essa razão que eu aviso que
esse livro não é para quem está passando por momentos difíceis, pois traz a
tona inúmeros gatilhos. É uma história duríssima, mas brilhantemente escrita.
Só temos que estar fortes para lê-la.
Mas e qual seria a história de
Shuggie Bain? O menino é diferente dos outros de sua idade. Isso não é claro no
início da trama, vamos descobrindo as peculiaridades de sua pessoa no decorrer
da trama. Muito se fala em “normal”, e Shuggie não se encaixa no normal de
Pithead, um conjunto habitacional com pessoas vivendo de auxílio governamental
após o fechamento da mina de carvão, para onde ele vai com a mãe e os irmãos a
partir de 1982. Me lembro de um diálogo
entre o menino e seu irmão mais velho, Leek (um lutador e uma baita pessoa,
diga-se de passagem), onde ele tenta fazer com que o irmão copiasse os modos e
jeitos das crianças de sua idade:
“- Estou tentando, Leek.
Tento o tempo inteiro. Esses meninos deixam a blusa pra fora da calça como se
não tivessem vergonha, e só fazem chutar aquela porcaria daquele balão de água
de um lado pro outro. Já vi eles enfiarem o dedo na parte de trás da calça e
cheirar. É tão... É tão... – Ele procurou a palavra – Baixo.
Leek o soltou.
- Se quiser sobreviver, vai ter que se esforçar mais,
Shuggie.
- Como?
- Bom, para começo de conversa, nunca mais diga
“baixo”. Meninos não devem falar que nem senhoras. – Leek cuspiu um chumaço de
catarro. – E você devia prestar atenção no seu jeito de andar. Tentar não ser
tão afeminado. Isso põe um alvo no meio das tuas costas.”
p. 186
Mais que ser um garoto “afeminado”,
que gosta de se vestir como um mafioso com terno e gravata, fascinado com
bonecas e cabelos, Shuggie ama sua mãe. E a força desse amor é o que guia a
história. Quando Agnes mergulha ainda mais na bebida, Shuggie, com menos de 10
anos, deixa de ir na escola para cuidar das crises de abstinência ou dos reflexos
de uma noite de bebedeira. E isso dói, dói como não há um abraço disponível ou
alguém decente para ajudar. Mas como pedir ajuda quando estão todos no mesmo
buraco? Os três filhos de Agnes tiveram respostas diferentes à criação e ao problema
da mãe, mas é em Shuggie que acabamos pensando mais e focando mais, talvez
justamente por ele não ser “normal”. Mas espero que um dia Shuggie descubra que
o normal não é interessante!
Para terminar, quero apenas ressaltar
o quão marcante é a personagem Agnes Bain. Tão marcante que um dia certamente
dará um prêmio para a atriz que ficar responsável por dar vida nas telas. Agnes
é orgulhosa e jamais abre mão da sua aparência e manter a cabeça em pé, mesmo
que acabe toda as noites largada na sarjeta fruto da bebida. Lembro especificamente
de uma passagem em que ela está em casa com Shuggie dançando, apenas para o
menino perceber que os vizinhos olham pela janela com muitas risadas. Agnes ali
dá o conselho que certamente o filho leva para a vida: Continue dançando e não ligue,
“você ergue a cabeça e. Dá. Tudo. De. Si.” (p. 329). E essa é uma boa
lição para se tirar disso tudo!