MITCHELL, Margareth. E o
Vento Levou: volume 1 e volume 2. Rio de Janeiro: Editora BestBolso, 2013. 1040p. Título original: Gone with the wind.
Uma história para sempre
gravada nos anais da cultura popular mundial, incialmente pela recepção
avassaladora do livro especialmente nos Estados Unidos, garantindo o prêmio
Pulitzer à Margareth Mitchell, e depois conquistando o mundo com um dos maiores
filmes de todos os tempos. À época, estabeleceu o recorde de venda de seus
direitos autorais e ajudou a (re)definir os conceitos de romances épicos. Esse
é E o Vento Levou, uma história sobre a escravidão, guerra civil,
destruição, fome, violência, amor, desilusão, família, honra e (por que não?)
esperança.
Um livro com essas credenciais
assusta, ainda mais quando nos deparamos com suas 1.000 páginas, divididas em
quatro partes. Não sei por que razão livros grandes nos assustam, mas é um
fato. Isso associado ao longo filme e a uma história que pode parecer cansativa
mesmo sem nem conhecer, afastam os leitores. Recentemente, tanto o livro quanto
o filme são alvos de críticas sobre seu conteúdo histórico, que realmente
retrata uma sociedade descaradamente racista e pronta para solidificar a
segregação em sua base. Mas será que tudo isso é suficiente para repudiar o
livro e simplesmente o esquecer? Seria simplesmente melhor não o ler?
Eu me debati com essa dúvida
ao longo da 7ª Leitura Coletiva do Blog Viagem Literária, que nos trouxe esse
problemático clássico da literatura mundial. Seu conteúdo e mensagens
históricas claramente incomodam e merecem repúdio, mas ao acompanhar a saga de
Scarlett O’Hara eu me percebi completamente obcecada. Obcecada pela história,
pelo jeito peculiar dessa anti heroína, querendo sempre extrapolar as metas e
devorar o livro. E é um livro que está gravado na história: minha avó o leu e
era apaixonada pelo Clark Gable por conta da adaptação cinematográfica. E a
internet está aí e o filme é muito grande para ser deletado. Então creio que
nesses casos o melhor não é esquecer e fingir que não aconteceu, mas sim
conversar sobre e problematizar sua história. Por que, honestamente, a história
é boa demais para ser esquecida. Então vamos fazer nossa parte e conversar sobre
o livro!
E o Vento Levou foi
publicado em 1936 pela escritora estadunidense Margareth Mitchell, descendente
de uma tradicional e antiga família da Geórgia, no sul dos Estados Unidos, e uma
profunda conhecedora (e talvez praticante) da filosofia do Velho Sul. Ao que
tudo indica, Mitchell escreveu o livro enquanto se recuperava de uma lesão
crônica no tornozelo e manteve a obra em segredo até finalmente estar pronta
para ser apresentada a uma editora. Com ele somos apresentados a uma das mais
complexas e polêmicas heroínas da literatura clássica, Scarlett O’Hara, uma espirituosa,
mimada, teimosa e resiliente “bela do Sul”, filha de um bem sucedido dono de
terras de origem irlandesa e de uma mãe aristocrata, e pronta para debutar na
sociedade sulista quando eclode a Guerra Civil Americana no território da
Geórgia. O livro narra a luta e as divagações de Scarlett para sobreviver no
período da guerra e a consequente Reconstrução em Atlanta e no condado de
Clayton, na Geórgia, sul dos Estados Unidos. Um romance de ficção histórica,
apesar da história em questão estar próxima dos acontecimentos, é muito mais
que uma história de amor. É sobre resiliência, sobre ação, honra, sobre o que
realmente faz um lar, sobre esperança. E, mais do que tudo, o livro tem muito a
nos ensinar, tanto nos assuntos que norteiam os personagens e sua histórica,
quanto no contexto histórico e a questão racial. Dito isso, considero importante
termos em mente algumas datas relevantes, para contextualização:
1861 – 1865: Guerra Civil Americana (ou Guerra de Secessão)
1865 – 1877: Reconstrução dos Estados Unidos
1900: Nasce Margareth
Mitchell, autora do livro
1926: Mitchell começa a
escrever “E O Vento Levou”
1936: É publicada a primeira edição
do livro “E O Vento Levou”
1939: É lançado a adaptação cinematográfica,
o filme “E O Vento Levou” estrelando Vivien Leigh e Clark Gable, que ganhou 8
Oscars.
Li em biografias disponíveis
na internet que Mitchell cresceu escutando de sua avó histórias e casos da
Guerra Civil, o que podem ter a inspirado em algumas situações descritas no
livro. Em um sentido geral, o título é uma metáfora para o
fim de um modo de vida no Sul antes da Guerra Civil. As coisas realmente
mudaram no Sul após a guerra, mas sabemos que questões relativas a preconceito
de raça não mudam de uma hora para outra. Assim, alerto que o texto contém
passagens preconceituosas e bastante problemáticas que podem ser um gatilho para
quem sofre ou sofreu na pele com o racismo estrutural e por vezes escancarado
em nossa sociedade. Como muito se diz hoje, o livro realmente não envelheceu
bem, mas é uma ótima oportunidade para promover a conversa sobre a questão.
Creio que essa parece ser a opção mais razoável, considerando que a história
está tão enfronhada na cultura estadunidense, fingir que não aconteceu não é
viável. Nesse sentido, o livro jamais pode ser lido em si como uma fonte
histórica, mas sim como uma frutífera fonte no ensino da diversidade, inclusão
e representatividade na cultura popular ao longo dos anos. Neste sentido, ele
sim pode ser bastante rico.
A história de
Scarlett em si é muito envolvente, fazendo com que as 1.000 páginas voem com o
vento. A narrativa é incrivelmente vívida, e a história fica com você
dias após seu término. A autora conseguiu dar vida a personagens muito bem
estudados e elaborados, complexos e falhos, e faz isso de uma maneira tão
intimista que em um certo ponto da história conseguimos desenvolver conversas e
argumentos sobre como as pessoas são, seus objetivos de vida, suas perspectivas
em relação às mudanças impostas pela guerra e no pós guerra e desenvolvemos
sentimentos tão exagerados e vívidos próximos do amor e do ódio. O livro, nesse
aspecto, captura e mostra com clareza fotográfica a imagem de cores brilhantes
que era a Geórgia e o caos político da reconstrução. Mas, acima de tudo, mostra
a resiliência e teimosia de uma mulher que queria um mundo, mas encontrou outro
e soube dançar de acordo com a música, com muito sofrimento, mas sem jamais
desistir. Scarlett foi (e ainda é) inspiração para várias mulheres quando em
dificuldade. Ora, levante a cabeça, arranque as cortinas, faça um vestido e vá em
busca da solução de seus problemas!
Acho que a Scarlett merece
algumas considerações e reflexões especiais. Nos meus muitos anos de leitura,
ela talvez é a personagem mais complexa e completa que já me deparei. Talvez
pelo estilo de narração, que escolhe destrinchar toda a visão de vida e
pensamentos mais intimistas da protagonista, vemos no início uma pessoa
mesquinha e ácida, que muitas vezes beira a maldade. Porém, suas ações não
correspondem aos seus pensamentos: ela pensa o mal de alguém, acaba com o
caráter da pessoa em seus mais íntimos devaneios, mas na prática ela ajuda, ela
doa seu tempo e seu trabalho, sem receio do batente e de fazer o que é certo ou
o que dela se espera. Acho que podemos entender um pouco disso, não é mesmo? Ninguém
é 100% puro e é o que você faz que realmente importa. Mas a Scarlett vai além.
Na primeira parte do livro conhecemos uma jovem vaidosa e preocupada em ser o
centro das atenções. Ela até consegue ser o foco da atenção dos homens e inveja
das mulheres (menos da sempre boa e pura Melanie), exceto quem ela mais quer:
Ashley Wilkes, que está prometido justamente à Melanie. Incomodada com esse
fato e louca de amor, ela se declara para Ashley durante um churrasco em sua
casa somente para ser negada, cena que foi presenciada pelo ambicioso e excêntrico
Rhett Butler. A partir daí a nossa história está delineada: Scarlett acaba se
casando com o irmão de Melanie, Charles, para tentar fazer ciúmes em Ashley, e
começa uma relação de amizade/inimizade com Rhett, quem parece melhor a
entender.
A vida trouxe muitos
infortúnios à Scarlett, o primeiro deles a viuvez precoce de seu jovem marido,
a quem ela não desprendia qualquer sentimento de amor ou até mesmo mera
simpatia. Imagina uma pessoa FRIA! Navegando a sociedade como uma jovem grávida
viúva, ela lutou para manter as aparências e ignorar suas vontades e caprichos,
falhando miseravelmente em diversas ocasiões. Mas a história de Scarlett vai muito
além dessa viúva acidental e uma mãe desnaturada. A crise da Geórgia chega em
cheio e ela tem que enfrentar a destruição de Atlanta, a fome, a falta de
perspectiva, os altos impostos e o julgamento da alta sociedade sulista... e os
ianques, claro! No grupo de discussão do livro montado para a Leitura Coletiva,
uma leitora comentou que a história possuía traços da saga Outlander, e
eu concordo em gênero, número e grau. A Scarlett seria a versão raiz da Claire,
uma Eva da literatura romântica histórica e um exemplo para escritores e
escritoras com suas desventuras e desafios ao longo de acontecimentos
históricos marcantes.
De um início tortuoso, eu
acabei me afeiçoando à Scarlett, pelo poder de seu pensamento positivo, sua
resiliência e por jamais desistir, mas principalmente por ser autêntica. É
incrível como ela nos foi apresentada como uma personagem falha, longe das
heroínas que comumente vemos nos livros. Ela é mimada, mesquinha, egoísta,
materialista e um tanto mais de istas, mas amigos e amigas, que força
ela tem e sempre teve! Força que incrivelmente só vai embora quando ela finalmente
começa a se abrir para a grande vulnerabilidade que é realmente amar alguém. O
amor foi a derrocada da máscara de ferro de Scarlett, algo que somente a sua
amada Tara, a fazenda lar de sua família e razão de toda sua luta, um cenário
marcante na história da literatura e querido por quem lê o livro, consegue
curar!
Nenhum
momento ilustra Scarlett melhor do que seu retorno a Tara após o colapso de
Atlanta. Ela se permite uma noite de lamentação por tudo o que foi perdido e na
manhã seguinte, ela marcha às cegas para o futuro. É por Tara que ela trabalha,
que ela luta, que ela inventa, que ela trai a irmã insuportável. É por Tara que
ela aguenta seus casamentos, a dor de cabeça de administrar uma propriedade
grande em tempos de guerra e de mudança, mas ela tem esperança. Paradoxalmente,
a esperança também é o calcanhar de Aquiles de Scarlett. Especialmente em
relação ao insosso Ashley, deliberadamente ignorando qualquer outro caminho
para a felicidade. Seu foco no amanhã empurra constantemente as boas ações para
um futuro indeterminado.
Termino
essa resenha sem falar de personagens e pontos da história tão importantes,
como Melanie, Rhett Buttler, Mammie, a insuportável India Wilkes e tantos
outros. Eles têm um lugar especial na história e parece um pouco errado deixá-los
de fora, mas não consigo, ou a resenha ficaria quase do tamanho do livro. Mas
esse livro é sobre e para a Scarlett, e as diversas Scarletts do mundo. Esse livro
é sobre lutar, sempre, e acreditar que amanhã é um novo dia.
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