Os Vestígios do Dia – Kazuo Ishiguro

>>  sexta-feira, 5 de março de 2021

 


ISHIGURO, Kazuo. Os Vestígios do Dia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019. 294p. Título Original: The Remains of the Day

Os Vestígios do Dia, publicado em 1989, é um imponente livro do escritor vencedor do Nobel, Kazuo Ishiguro. Conheci o autor em Um Artista do Mundo Flutuante e posteriormente em Não Me Abandone Jamais, e sua escrita simples porém complexa, leve, porém profunda, me conquistou. Assim, quando encontrei essa obra em um sebo em Bristol, na Inglaterra, não pensei duas vezes: desembolsei a pechincha de 1 libra e adquiri o livro. Como uma boa compradora que não consume os livros na mesma velocidade que paga por eles, demorei cerca de 2 anos até finalmente aproveitar o tempo em casa proporcionado pela pandemia para colocar algumas leituras em dia. Nesse contexto, não teve como fugir de Ishiguro, um dos meus autores favoritos dos últimos anos. E que obra encontrei!

O livro nos traz os relatos e pensamentos em primeira pessoa do narrador, o estimado mordomo inglês Stevens, que por décadas serviu com devoção a Mansão Darlington, no interior da Inglaterra. O Sr. Faraday, o novo senhor da casa, um americano irônico e excêntrico para os padrões da alta sociedade inglesa, insiste que Stevens tire alguns dias de férias e pegue seu carro emprestado para enfim conhecer o seu país natal. Como um bom mordomo de formação, Stevens pensa em aproveitar o tempo para procurar mão de obra qualificada para trabalhar na casa e logo pensa em Miss Kenton, uma antiga governanta da casa com quem ainda troca correspondências e que agora está casada e morando em outro local do país. Ele então sai em viagem para encontrar com sua antiga amiga e correspondente, crente de que ela está infeliz em seu casamento e que adoraria aceitar o antigo trabalho.

Durante sua viagem vamos acompanhando seu pensamento vagar por sua história como mordomo em formação e os primórdios da mansão, seu relacionamento com seu pai e até mesmo suas interações com Miss Kenton. Com isso, conseguimos conhecer um pouco mais desse homem com muita compostura e que vive para seu trabalho. Descobrimos que ele consegue ser bastante insensível e sério, bastante esnobe, com destaque para a sua devoção e lealdade cega ao senhor da casa a que serve. O falecido Sr. Darlington, antigo dono da propriedade e patrão de Stevens era um homem muito influente na sociedade e no período entre guerras presidiu jantares e reuniões em busca de apoio político para os Fascistas e a Alemanha nazista. Agora com tempo para refletir sobre sua vida e escolhas, Stevens começa a se perguntar se sua lealdade cega foi o certo a se fazer, e quais são os limites de uma devoção profissional tão intensa que acabou até mesmo por estragar suas chances de felicidade.

O livro é uma obra muito bem escrita e pensada sobre arrependimento e limites, sobre honra e prioridades. Eu não sou muito fã de livros sobre arrependimentos, mas esse me cativou. Talvez pela clara noção de que Stevens estava exagerando e fazendo interpretações completamente erradas, especialmente em seu relacionamento com a Miss Kenton. A sensação de impotência e a busca por justiça e felicidade para mim é muito forte, e situações assim me deixam completamente frustradas: aquilo que poderia ter sido e não foi. Aqui o motivo para isso é principalmente o orgulho e honestamente uma vida sem alegrias e com muita devoção para algo que não valia a pena. Mesmo assim não posso negar que o livro traz um retrato muito completo, comovente e profundamente triste de um indivíduo que amarrou toda a sua vida a uma coisa apenas para perceber que essa coisa pode não ter valido a pena.

Para terminar, eu pensei muito em uma viagem que fiz em 2019 à Salisbury, na Inglaterra. O local foi um dos primeiros a ser visitado por Stevens em sua jornada, e muito me lembrou as reflexões que a minha própria viagem aflorou em minha mente.


Nada melhor do que novos ares, novos lugares, uma outra língua e desbravar o diferente para conhecermos a nós mesmos. Com distância conseguimos enxergar melhor o perto, aquilo que sem essa perspectiva talvez fosse impossível de entender. Ao sair da casa objeto de suas obsessões e todo o trabalho que definiu a sua vida, Stevens pode avaliar suas escolhas e seus atos e refletir sobre quem ele quer ser e o que realmente vale a pena. Acho que podemos identificar com ele nesse aspecto.

Em Salisbury conheci uma catedral imponente, casa de nada mais nada menos que um dos mais antigos exemplares escritos da Magna Carta. O lugar é tão significativo que já foi objeto de atos de terror, buscando o simbolismo de destruir aquilo que representa as bases de uma sociedade. Diante de um artefato tão precioso, tão representativo, em um lugar tão glorioso em uma cidade provinciana, isso nos faz pensar. Consegui refletir um pouco sobre as minhas próprias escolhas profissionais e o meu futuro, e o que me faz verdadeiramente feliz. Lembro de me sentar no gramado em frente à entrada da catedral e fazer umas das minhas tarefas favoritas: pensar! Talvez eu tenha expressado para mim mesma alguns arrependimentos, mas tenho certeza que cheguei na grande conclusão do dia: bola pra frente, é hora de focar nos vestígios do dia!

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