HARDY, Thomas. Tess dos D'Urbervilles. Vitória: Editora Pedrazul, 2106. 352p. Título original: Tess dos D'Urbervilles
Mais um dia, mais um clássico que a gente descobre, e mais
um livro que acaba com nosso pequeno coração... Fazia tempo que uma obra mexia
tanto comigo, me deixava tão sentimental, tão na “bad”, e tudo assim, sem nem
esperar! Os melhores livros são essas surpresas, aquele que você começa a ler
sem expectativas, sem noção da história, sem ciência de sua fama e então... seu
mundo desaba daquele jeito que só um bom livro, uma boa história, uma história
comovente são capazes de fazer. Senhoras e senhores, eis TESS DOS
D’URBERVILLES!
Tess dos D’Urbervilles é considerada a obra prima do
britânico Thomas Hardy, tendo sido publicado em 1891. Hardy se assemelha ao
estilo de George Eliot (cuja obra Middlemarch recentemente resenhei) e suas
obras se passam durante o declínio do status da população rural na
Grã-Bretanha, especialmente no sudoeste da Inglaterra. Do autor li também “Longe
Deste Insensato Mundo”, e comparando as duas obras posso dizer que alguns temas
são corriqueiros:
·
Paisagem
rural, e o trabalho manual no campo como um grande “purificador” da honra de
uma pessoa;
·
O
conceito da perda total: a propriedade rural ligada aos êxitos de uma pessoa,
bem como a sua razão de vida;
·
Pessimismo
à natureza e sua força brutal, que sem maiores avisos pode acabar com todas as
conquistas do homem;
·
A mulher
injustiçada e enganada por um homem manipulador, maldoso e sem escrúpulos;
·
A
figura de um homem religioso, bondoso, de princípios, que ama a mulher
injustiçada, porém não quer se vincular a ela;
·
Sua
escrita e os destinos dado aos seus personagens mostram um pessimismo inerente,
combinado com doses de melancolia e tragédia;
·
A ideia
de que o destino de uma pessoa está traçado e pouco há o que fazer.
Falando assim parece horrível, mas as histórias são bem escritas e
elaboradas e, mesmo pressentindo que tudo vai dar errado e a desgraça vai
piorar, você simplesmente não consegue parar de ler. Culpo isso ao nosso
sentimento romântico idealista que espera ansiosamente o final feliz, como
forma de consertar tudo e valer a pena a trajetória dolorida da vida. Os livros
de Hardy, especialmente Tess, não seguem esse mesmo caminho: a vida pode ter
alegrias pontuais, mas a luta, o trabalho árduo e as circunstâncias de uma
sociedade masculina cristã são muito mais fortes que a força do amor. Após ler
o livro, chego a conclusão de que vivemos numa sociedade patriarcal e a
simplicidade de uma pessoa não é possível trazer a felicidade. Pois é, estou em
um sério estado de depressão depois de ler esse livro, mas não é de todo ruim:
há muito tempo um livro não me fazia pensar tanto, trazia tantos sentimentos de
tristeza e revolta, e talvez me moveu para ter conversas importantes como uma
maneira de apaziguar essa luta interna. Esse é o poder da literatura, e vou
tentar explicar um pouco melhor.
Situado na Inglaterra rural, o romance conta a história de uma garota pobre,
Tess Durbeyfield, que é enviada por seus pais para uma família supostamente
nobre na esperança de encontrar uma fortuna e um cavalheiro como marido. O pai
da moça, ignorante e facilmente impressionável, acredita que seu sobrenome “Durbeyfield"
é uma variação de "d'Urberville", nome de uma nobre família da
região. Completamente atordoado pelas oportunidades que um mundo de sangue azul
podem trazer, ele envia sua filha adolescente, a bela, pálida, rosada e
simplória Tess, na única carruagem da família e fonte de todo os seus sustentos
para conhecer seus possíveis parentes ricos, na esperança de encantar a família
a ponto desta a adotar. No caminho, exausta do esforço, a jovem adormece sob as rédeas e causa um acidente entre
carroças, matando o único cavalo da família. Tess se sente tão culpada pela
morte do animal e pelas consequências econômicas para a família que resolve
visitar a Sra. D'Urberville e pedir ajuda evocando a honra e os deveres do
provável parentesco entre elas. O que a jovem desconhece é que o marido da Sra.
D'Urberville, Simon Stoke, adotou o sobrenome aleatoriamente buscando uma
melhor colocação social, não tendo qualquer parentesco com a família.
Tess não consegue encontrar a
Sra. D'Urberville, mas sim o seu filho libertino e devasso, Alec, que fica
completamente encantado pelas feições puras e simplórias da moça, e lhe garante
uma posição como criadora de aves na propriedade. Tess sente-se afrontada e repudia
os avanços românticos do rapaz e alerta seus pais sobre os riscos de aceitar o
emprego, mas eles ainda estão completamente cegos no conto de fadas que criaram
e esperam que o rapaz se apaixone e case com Tess, para tirar toda a família da
miséria. Ela detesta Alec, e sente uma repulsa física à sua presença e aos
avanços indecentes que ele constantemente faz, mas sente que deve a família
pelo cavalo morto e decide aguentar no seu emprego até ter o suficiente para repor
os danos.
Um dia, após uma longa jornada de trabalho, Tess
volta caminhando para casa com alguns outros aldeões, quando acidentalmente desperta a atenção de uma mulher, a antiga amante favorita de Alec, que foi
descartada com a chegada de Tess. A mulher ameaça Tess de morte, ou ao menos
atrapalhar a sua beleza, quando Alec chega e a "resgata" da situação.
Em vez de levá-la para casa, no entanto, ele cavalga através da névoa até
chegarem a um antigo bosque em uma floresta, quando informa que está perdido e
sai a pé para se orientar. Tess, cansada dos acontecimentos do dia e do
trabalho, não aguenta e cochila dos arbustos. Alec então se aproveita da
vulnerabilidade da moça e a estupra.
A partir daí a vida de Tess está definida: ela é
aquela que não é mais pura, que foi violada e para sempre está marcada. Nenhum
casamento a salvará da vida de pobreza com seus pais pois a sua imagem e sua
honra foram maculadas, e todos da cidade sabem disso. É marcante como a moça se
sente culpada e vergonhosa pelo acontecimento, apesar de ser mais que claro que
ela não fez nada de errado. Nada mais resta para a pobre moça a não ser literalmente
enterrar o seu passado e mudar de cidade, para um lugar onde as pessoas não
conheçam a sua desgraça.
Antes de continuar a história, gostaria de fazer
algumas considerações sobre a temática da violência sexual aqui abordada.
Lembro que o livro se passa em 1870 e foi publicado em 1891, e o assunto muito
chocou a crítica e o mundo literário, que classificou a obra como “indecente”.
Na verdade, em nenhum momento o autor escreve a palavra “estupro”, ele somente
deixa a entender que houve relações sexuais, cabendo ao leitor distinguir entre
sedução ou violência. Li ou pouco sobre o assunto e a minha opinião é bem
clara. Por tudo o que ele nos falou da relação entre Alec e Tess, para mim não
resta dúvidas de que a relação não foi consensual, e todo o livro deixa isso
bastante claro. Essa escolha pela subjetividade parece ser uma manobra do
autor para preservar a inocência do público e satisfazer o código moral da
época. Essa discussão literária para mim fica em segundo plano em relação ao
que considero principal: a visão da mulher aos olhos do autor, um homem.
Tess é uma mulher pura. Inclusive, na primeira edição do
livro, esse era o seu subtítulo “Uma Mulher Pura”, o que foi excluído nos
lançamentos posteriores. Para o autor, ela é a personificação da pureza e
castidade bíblica: puramente natural e puramente mulher (a essência do feminino),
pura em beleza e em seus motivos. Até que o pecado recai sobre ela e as consequências
desse fato a seguem por toda sua vida. Tess é impotente e principalmente submissa àqueles ao seu redor. Mas ela
sofre não só por causa do “sedutor” que a destruiu, mas também por seu amado que
pouco faz em seu bem. Apesar de seu sofrimento e fraqueza, ela demonstra
paciência e resistência sofridas. Tess sente prazer em trabalhar nas fazendas
leiteiras e parece quase invencível às provações da vida. Ela é bonita, é
lutadora, é decente: ela é o ideal da mulher trabalhadora inglesa do século
XIX. Porém, o destino não foi bom para ela.
A história de Tess é mais do que a violência sexual por
ela sofrida, bem como este não é o último de seus inúmeros sofrimentos. Mas ela
luta, e como luta. Ela tanto fez que a vida lhe dá uma segunda chance, de
maneira inesperada. No fundo, Tess sabe que é inútil tentar escapar de seu
passado, mas a possibilidade de felicidade em uma vida miserável é uma grande
tentação.
Aos 20 anos, Tess encontrou trabalho em uma fazenda de
gado leiteiro onde seu passado é desconhecido. Aqui ela encontra um bom
trabalho pelo qual é apreciada e inclusive faz amizades com as outras mulheres
da fazenda. E é ali que ela conhece a sua segunda chance, Angel Clare, aprendiz
de fazendeiro. Angel é o filho mais novo de um pároco e esperava-se que ele
seguisse carreira na igreja. Mas ele não tem vocação para o clérigo, inclusive
por várias vezes questiona os dogmas religiosos, o que faz com que ele escolha investir
na agricultura e na vida ligada à terra. Bonito e jovem com forte caráter
moral, Angel é um objeto de intenso amor para as mulheres que trabalham na
fazenda, mas é a diligência de Tess, sua natureza simples, sua beleza e sua
inocência que o atraem. Tess faz o possível para impedir Angel de persegui-la,
pois se considera inapta a ser amada e ser feliz: o pensamento de seu passado a
alcançando é seu maior medo, mas seu próprio amor por ele e a chance improvável
de felicidade são tentações esmagadoras.
Tess dos d'Urberville é essencialmente uma
narrativa em terceira pessoa, mas a maioria dos eventos são vistos pelos dos
olhos de Tess. A ordem desses eventos segue uma sequência cronológica simples, o
que atesta a característica simplória da vida rural. A linguagem, inclusive,
muda de acordo com as classes sociais das pessoas. É um estudo interessante
sobre a época, e muito bem feito, diga-se de passagem.
Eu não posso falar mais da história sem entregar
spoilers, mas posso falar de Stonehenge, o famoso local pré-histórico no
interior da Inglaterra que, de forma literal e simbólica, simboliza a
personagem de Tess e seu trágico destino.
Em um dia inesperadamente frio da primavera
inglesa, fui com um grupo de amigos conhecer as famosas pedras pré históricas.
Muito me falaram contra o passeio antes de o fazer, alegando ser algo tedioso,
sem outras atrações a não ser “olhar pedras”. Ignorei os avisos e fui mesmo
assim: em abril de 2019, num mundo pré pandemia, não vou perder a oportunidade
de visitar um dos lugares mais famosos do mundo por que algumas pessoas
simplesmente o consideraram tediosos. Eu sou dessas que adoro o que outras pessoas
chamam de chato: museus, caminhadas por centros históricos, livros clássicos
como Tess... eu sou diferente, e algo me dizia que Stonehenge seria para
pessoas como eu, que acham a beleza em lugares diferentes. E eu não estava
enganada!
O passeio é simples: você vai até uma base
turística, compra os ingressos, pega alguns fones de ouvido para uma visita
guiada e entra no parque, pegando um ônibus que te leva o mais próximo possível
das pedras. A partir daí você tem uma direção obrigatória a seguir, passando
por alguns marcos com respectivas gravações nos audio-guias, te ensinando sobre
a história e representações do lugar. É uma verdadeira aula de pré história, e
o curto caminho é muito bem aproveitado: primeiro você observa o lugar de longe
para depois chegar bem pertinho das pedras.
Honestamente
não conheço muito sobre a história do lugar e meu interesse em pré história é
inexistente, então não prestei atenção ao áudio-guia que vem com o passeio, mas
consegui entender algumas coisas: o lugar é tipo como um templo pagão, um lugar
de sacrifício e grande importância à agricultura. E é incrível que as pedras datadas
entre 3.000 e 2.000 AC ainda estejam lá e foram assim montadas. Mas o dia para
mim não foi sobre aprender sobre a pré história, mas sim sobre sentir.
Lá do alto,
olhando as pedras, eu senti o poder da natureza: nunca um vento tão forte me
abateu, com um frio gelado fora de época, mas que me fez resgatar meu casaco de
inverno em plena primavera. Ali, todos os sentidos são exigidos: a visão, para
enxergar além do horizonte plano, de gramas e poucas cabras pastando; o olfato
que consigo lembrar agora mesmo, o cheiro da grama verde e farta, de primavera,
em pleno vigor; a audição, pois o vento ali, ao se bater nas pedras faz alguns
sons que parecem querer conversar com você; e o tato... você não pode tocar nas
pedras por uma questão de preservação do patrimônio histórico, mas você sente
na pele aquele vento daquele lugar que tem um quê de magia. No meio da volta eu
me senti viva, limpa, plena, como me sinto após uma longa meditação. Ali, num
templo pagão, senti a minha espiritualidade e sorri como nunca sorri antes da
viagem. Foi uma terapia, algo que ansiava arduamente sem ao menos saber que
precisava, algo extremamente necessário para seguir em frente e aturar todos
meus problemas e tarefas. Foi sensorial, simples e belo.
Isso me leva a
refletir sobre Tess. Uma cena importante do livro se passa em Stonehenge, e me
pego pensando em todas as significações que levaram o autor a situar sua obra
ali. Não posso dizer qual o seu raciocínio, mas posso dizer o que acho baseada
em minhas experiências.
A Tess para
Hardy é o ideal de mulher, que ele mesmo prova que não existe: o pecado e as
consequências nos atingem, e devemos parar de tentar viver com tamanha
perfeição, pois ela é inalcançável. Tess é o típico “mundo natural” em contraposição
à sociedade vitoriana que ela tanto buscou com seu sobrenome “D'Urbervilles”. Talvez o
altar de Stonehenge afaste da sociedade cristã e de seus padrões, aproximando a
uma cultura pagã e instintiva, talvez seja isso: a natureza e a moralidade de Tess estão ligadas ao
mundo natural, inerentemente pagão em seu reconhecimento da natureza (incluindo
a natureza humana) como uma força potente e até divina. E eu senti a natureza
naquele lugar, não posso negar!
Para terminar,
fica aqui a minha indicação de um clássico muito bem escrito. É um livro que
vai te fazer sofrer, mas vai te fazer pensar, ponderar, vai tomar seus dias,
suas noites, suas conversas, seu tempo livre e aquele tempo que você deveria
estar trabalhando, mas está com um livro escondido. É a nossa natureza, sentir,
pensar, viver e ler! E por isso eu recomendo que todos conheçam e desconstruam
a figura da mulher pura apresentada em Tess dos D'Urbervilles!
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