Hamlet - William Shakespeare
>> sexta-feira, 25 de setembro de 2020
SHAKESPEARE, William. Hamlet. São Paulo: Penguin - Companhia das Letras, 2015. 320p.
“Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer..., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos”.
Nenhum autor teve tanto impacto na literatura mundial do que Shakespeare. Não só na literatura, mas em toda cultura, pelo menos a ocidental. Frases de Shakespeare, em um inglês arcaico e difícil do século XVI até hoje são jargões em todas as mais diversas línguas e linguagens. Estudar e ler Shakespeare é ir no ABC da história da escrita e das artes. Suas tramas, peças, contos, sonetos são verdadeiras obras de arte, até hoje dissecadas e talvez insuperáveis. E neste contexto temos Hamlet, talvez de suas obras aquela com mais frases famosas e cenas inesquecíveis:
“Há algo de podre no reino da Dinamarca”
Comecei a me interessar por Shakespeare de forma mais específica em novembro de 2018, quando iniciei uma temporada de estudos linguísticos na Inglaterra. Tive muita sorte de morar com pessoas extremamente cultas, numa casa lotada de livros, onde descobri inúmeros clássicos e fui apresentada a livros que viriam a ser favoritos. Atravessando um maravilhoso e típico outono Inglês, fiz amizades de diversas origens pelo mundo, unidas por um mero detalhe: o amor por livros. Diante deste cenário e contexto, fui cada vez mais me envolvendo com a literatura inglesa, descobrindo e redescobrindo nomes como Jane Austen, George Eliot, Virginia Wolfe, as Irmãs Brontë (cuja aventura a Haworth contei na resenha de Jane Eyre), E.M. Forster e tantos mais. E nessa deliciosa viagem fui descobrir Shakespeare como o gênio que ele é.
“O hábito, esse demônio que devora todos os sentimentos”
Numa despretensiosa conversa sobre a influência de Shakespeare na literatura e cultura popular mundial, fui de mera espectadora para ávida participante. Diversas frases que eu considerava ditos populares brasileiros eram, na verdade, de Shakespeare. Intrigada, fui investigar e estudar um pouco mais e acabei descobrindo que Hamlet de destaca nessas referências. Foi assim que cheguei à obra, vindo da famosa cena de ode à caveira humana, até coisas que sempre falo até então desconhecendo sua origem. Logo, descobri uma obra complexa, intrigante, inteligente e cativante.
“Foi curto
Tal como o amor das mulheres.”
O livro – ou melhor, a peça – conta a história do Príncipe Hamlet da Dinamarca, que está de luto pela morte do pai, o antigo Rei. O reino agora é comandado pelo seu tio Cláudio, sucessor ao trono, que rapidamente se casou com a antiga rainha Gertrudes, mãe de Hamlet. Em um lugar sombrio com seus sentimentos em algo que pode ser descrito como uma depressão severa, Hamlet luta contra a tristeza e melancolia, e sente muita raiva em relação à sua mãe, a quem considera uma traidora à memória do pai pelo casamento relâmpago com o novo rei:
“Antes mesmo que o sal das suas lágrimas hipócritas abandonasse o fluxo de seus olhos inflamados... Casada estás!”
Em meio a esta situação, Hamlet um dia escuta dos guardas do Castelo que há um fantasma no local que em muito se parece com o falecido rei. Hamlet, como a pessoa saudável que claramente é, resolve ver o fantasma com seus próprios olhos e quem sabe bater um papo e matar as saudades do pai – por que não? O fantasma acaba aparecendo para Hamlet, dizendo ser seu pai e revelando a real causa de sua morte, até então desconhecida: seu irmão Cláudio o envenenou. Ele pede então que o filho vingue sua morte, o que Hamlet concorda e elabora um plano: como já estava com um comportamento preocupante dado seu luto, fingirá ter sucumbido à loucura para não levantar suspeitas de seu comportamento perante o tio.
A partir daí entramos numa elaborada trama de um jogo de xadrez político entre as pessoas, com o reino da Dinamarca sendo ameaçado por uma possível invasão da Noruega. Além disso, começa uma guerra fria de articulações entre Cláudio e Hamlet – Cláudio está preocupado com o comportamento do sobrinho e traz pessoas para tentar entender suas razões, o que Hamlet vê e disputa, em um embate distante neste jogo de poder. Nesse interim, cada vez mais Gertrudes se aproxima de Cláudio, para a fúria de Hamlet, cuja relação com a mãe evidencia todos os estudos da psicologia sobre o Complexo de Édipo. Interessante ver esse comportamento descrito tão literalmente e bem por Shakespeare, anos antes da psicanálise estudar a questão. A relação entre Hamlet e a mãe é sensual e me incomodou bastante; a traição que Hamlet sente em minha opinião muitas vezes supera os limites do luto do seu pai e entra na questão de seus próprios sentimentos. É nesse contexto que Hamlet nos traz uma das frases mais clássicas desta obra:
“fragilidade, teu nome é mulher”
E isto me traz para outro ponto da resenha, antes de continuar a narrar a história: a figura da mulher na obra. Evidenciada por Gertrudes, as mulheres são retratadas por toda a história como manipuladoras e articuladoras do poder usando sua sensualidade e poder sobre os homens, o que eu vejo de uma maneira problemática. Porém, temos agora na história outra figura feminina que em muito se opõe à Gertrudes e também disputa o amor de Hamlet: Ofélia.
Ofélia é filha do conselheiro de Cláudio, e chama a atenção de Hamlet, que sempre a seduz com diálogos um tanto quanto sensuais para a época. Na verdade, a corte não vê com sinceridade os avanços de Hamlet, acreditando ser nada mais do que desejos carnais e sem sinceridade para assumir um compromisso com a moça. Durante grande parte da peça, ela fica perturbada entre resistir ou não à Hamlet, duvidando de suas promessas.
Enquanto isso, Hamlet continua seu plano de desmascarar o tio e vingar o pai, mas primeiro precisa confirmar o que o fantasma do pai lhe contou. Para isso, arquiteta um plano: aproveitando a visita de um grupo de teatro, ele monta uma peça para ser apresentada durante uma festa, mostrando o que o fantasma lhe contou. Ao assistir a encenação, Cláudio fica extremamente perturbado e as pressas abandona o local, confirmando as suspeitas de Hamlet e deflagrando a segunda parte da peça: a disputa entre os dois, com muito jogos políticos, assassinatos e traições.
“Necessito de sangue em vez de lágrimas.”
Essa é a base do enredo de Hamlet, e é surpreendente ver como essa história influenciou a cultura mundial. Quantas vezes não vimos esse enredo surgir em outras obras? Quantas vezes não vimos a encenação da famosa cena da caveira, onde Hamlet luta com suas resoluções e sofre as consequências?
Depois de ler essa complexa obra Shakesperiana, fui picada pelo mosquito da curiosidade e aproveitei a estadia na Inglaterra para conhecer mais do autor. Assim, resolvi visitar Stratford-Upon-Avon, simplesmente conhecida como Stratford, a histórica cidade inglesa onde o autor nasceu, viveu grande parte de sua vida e está enterrado.
Foi um dia maravilhoso, do jeito que eu amo: um frio cortante e gostoso de 7 graus e um céu lindo e azul de brigadeiro, espantando a chuva tipicamente inglesa. Essa visita me fez definitivamente apaixonar pelo outono. Nada como um dia numa cidade histórica com intrínsecas conexões à literatura, usando minhas roupas de frio e visitando museus de um autor respeitado. Assim, caminhava pelas ruas da cidade e cada prédio, cada telhado, cada parece me encantava profundamente. Assim cheguei ao museu de Shakespeare, situado na casa onde ele nasceu e cresceu.
Eu me emociono quando estou em pontos históricos e significantes, e não foi diferente com esse lugar. Normalmente visitado por crianças em idade escolar, eu absorvia todo o conhecimento passado pelos guias turísticos, olhava cada parede, cada pedra do piso e não parava de pensar: estou no mesmo lugar que Shakespeare um dia esteve. As pessoas costumam me falar que meu nome é adequado para o modo como levo a vida: Alice. Não vejo problemas nisso, pois me encanto, me apaixono e transformo cada passeio numa aventura. E não foi diferente em Stratford, onde fiquei impressionada com o pé direito da casa, o tamanho das camas, das roupas, dos sapatos... Descobri que com meus 1,73m seria uma gigante aberração em 1400, e me diverti muito com esse fato.
Para mim, há algo de especial em ver uma mobília onde uma pessoa que mudou a história do mundo um dia foi ninada. Tudo parece ser tão humano, tão simples, tão corriqueiro, quando na verdade é um lugar onde viajantes do tempo devem retornar para ver a história acontecer. Sim, minha cabeça viaja longe: se algum dia eu tiver uma máquina do tempo, gostaria de retornar à Inglaterra do final do século XIV para entender um pouco mais desse momento. Museus fazem isso comigo, deixam minha imaginação à solta e me trazem um pouco mais de compreensão sobre o presente. Visitar Stratford me fez entender um pouco mais da importância e do legado de Hamlet, como um autor estava anos luz à frente de seu tempo e criou uma obra atemporal, que permeia vocabulários e imaginários de diversas linguagens.
Por fim, terminar o dia visitando o túmulo do autor (algo que curiosamente gosto de fazer, visitar cemitérios históricos), nos mostra como nada realmente acaba. 500 anos após sua morte lá estou eu, prestando homenagem a alguém que mal conhecia e que em tão pouco tempo marcou um capítulo da minha vida. É como o autor mesmo fala na obra:
Ler Hamlet é difícil: a linguagem arcaica é complicada até mesmo nas novas traduções, e o formato de peça não ajuda muito a fluidez da leitura. Porém, são tantas frases marcantes, tantas citações dignas de reflexões próprias, que não consigo me arrepender de ter passado alguns meses para terminar a obra. Para quem não quer encarar o livro, eu fortemente recomendo que assista uma das diversas adaptações da obra ao cinema. Vale a pena ver como um livro tão antigo é tão atual e tão necessário, trazendo discussões desde representação de gênero, papel da mulher, psicologia, loucura, depressão, política e jogos de poder, entre outros.
Se a leitura desanimar, podemos agradecer ao cinema por não fazer essa história ser esquecida. E assim será por muitos séculos mais!
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