Jane Eyre – Charlotte Brontë
>> quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. São Paulo: Editora Martin Claret, 2019. 691p.
É uma honra poder falar sobre um dos
meus livros favoritos, que tanto me marcou e que recebe força no mercado
editorial, com lançamentos que podem ser classificados como verdadeiras obras
de arte. Jane Eyre é um clássico por diversas razões, e mesmo hoje, 173
anos depois do seu lançamento, não cansa de encantar e se solidificar como uma
das grandes obras literárias inglesas.
Li Jane Eyre pela primeira vez
aos 20 anos, após conhecer e me apaixonar pelas heroínas e histórias de Jane
Austen. Curiosa e ávida por mais romances clássicos com protagonistas
femininas, foi-me sugerido O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë.
Não tão satisfeita com o que li, descobri na biblioteca da faculdade enquanto
pesquisava no acervo, uma outra Brontë com um livro com nome de mulher. Após ler
a sinopse da surrada edição, decidi arriscar. E não me arrependi!
O livro me marcou tanto que até hoje
me lembro de quando e como o li. Estava na fazenda da minha família, fugindo do
carnaval, e passava o dia inteiro devorando a leitura como poucas vezes fiz.
Deitada na rede, esticada no sofá, de madrugada com a fraca luz acesa... Eu só
consegui parar e me comunicar com a sociedade em volta depois que terminei.
Poucas vezes senti tantas coisas lendo um livro, poucas vezes sofri tanto as
dores de uma personagem e poucas vezes exalei um suspiro tão significativo
quando chegaram as páginas finais. Todos da minha família me perguntavam o que
eu estava lendo com tanta atenção e me irritava ao repetidamente explicar que
era Jane Eyre, de uma autora britânica do século XIX sobre a dura vida
de uma órfã. 14 anos atrás Jane Eyre não tinha a aceitação que tem hoje no
mercado, não existiam edições como a que hoje resenho e muito pouco se falava
sobre escritoras mulheres, protagonistas mulheres e história escrita para
mulheres. Jane representou para mim novos ares que eu nem sabia que ansiava
respirar, e desde então fui uma fervorosa defensora de sua importância e
divulgação.
Agora, anos depois do nosso primeiro
encontro, eu e Jane nos vemos novamente. Eu não sou mais uma menina ingênua e
romântica, e a Jane que eu conheci desta vez é outra. Uma Jane forte nas suas
infelicidades, fiel a seus princípios e surpreendentemente sarcástica, com um
sutil humor escondido em seus devaneios. A força de Jane Eyre está na
profundidade de sua elaboração: ao escrever os devaneios da desafortunada órfã
conseguimos ter empatia e adaptar seus sofrimentos, forças e resoluções às
nossas mais diversas situações psicológicas e cotidianas.
Talvez você tenha assistido ao filme,
disponível em plataformas de streamings. Caso não tenha o feito, eu sugiro
fortemente ler o livro primeiro para então ver seu mundo representado. Como um
bom representante da literatura gótica britânica, especialmente o período final
e de transição, Jane Eyre é um livro escuro, sombrio e conta com um
mistério que paira sob toda a história. Assistir ao filme antes da leitura significa
descobrir esse mistério e tirar uma das mais interessantes facetas da história.
Seguindo os passos da literatura
gótica britânica (cujo exemplo mais conhecido é Rebecca, de Daphne du Maurier e satirizado por Jane Austen
em Mansfield Park), as seguintes características não só estão presente
como são marcantes em Jane Eyre:
·
Cenário misterioso e sombrio, comumente em enormes mansões;
·
A presença ou o medo da presença de monstros e fantasmas;
·
Maldições ou profecias;
·
A donzela em perigo;
·
Romance;
·
Emoções intensas.
Charlotte Brontë utilizou esses
elementos góticos em Jane Eyre com um significado simbólico para criar
uma nova linguagem “feminina”, através da qual Brontë cria uma heroína cujo
modo autobiográfico de escrever é usado para traçar uma história de rebelião
feminina em busca de identidade.
Jane Eyre, a heroína
que dá o título da história, é uma criança órfã que foi despachada para ser
educada e cuidada pela tia. Em moldes que lembram a fase gata borralheira de
Cinderela, a tia nunca gostou de Jane e a maltrata, o que deixa marcas
profundas em sua infância. Após sofrer poucas e boas e injustiças que fazem
ciúmes em novelas mexicanas, Jane é despachada para um orfanato a fim de
terminar sua educação e treinar para ser uma governanta e conseguir o seu sustento.
Infelizmente para nossa heroína, ela talvez conseguiu ir para um lugar ainda
pior que a casa da tia, onde todas alegrias que milagrosamente consegue nutrir
são duramente arrancadas de sua vida, tanto pela maldade dos que administram o
lugar quanto pelos infortúnios da tuberculose (tanto presente e que tanto fez
sofrer Charlotte Brontë e sua família).
Conseguindo sobreviver neste ambiente
inóspito e sombrio, Jane consegue um emprego como governanta de Adéle, uma
criança francesa sob a tutoria do misterioso e ausente Sr. Rochester, o dono da
imensa, escura e obscura Thornfield Hall, que guarda um segredo (ou um
fantasma). Acontecimentos estranhos são comuns na mansão, normalmente atribuídos
à uma empregada bêbada. Em Mr. Rochester temos um par
romântico, um homem bruto, grosseiro, que muda o humor na mesma velocidade que
troca de roupa. Por mais problemático que seja, ele é hipnotizante e viciante,
e logo Jane se vê em uma situação que jamais anteviu.
Este é o melhor resumo do livro que
posso fazer sem entregar spoilers. No mais, posso apenas recomendar a leitura
desta obra que tanto me marcou, a ponto de me fazer estudar sobre as literatas
irmãs Brontë, cuja vida em nada apresenta melhoras em relação ao sofrimento de
suas personagens.
Recentemente passei uma temporada na
Inglaterra, onde meu encanto pela ousadia e feito das Brontë em conseguir
sucesso editorial em um ambiente praticamente masculino (mesmo que inicialmente
sob pseudônimos do sexo oposto para não atrapalhar a aceitação das obras) me
levou a viajar 8 horas em um dia para conhecer a famosa Haworth, residência da
família Brontë.
Haworth fica em Keighley, noroeste de Manchester e Leeds, coração dos Moors, uma paisagem cheia de morros e
praticamente sem vegetação, onde o cinza e o bege são as cores predominantes. Os ventos falam
e marcam essa paisagem úmida e sombria, onde o ar pesa e é frio mesmo sob o sol
do verão. Estar no vilarejo, subir suas colinas e entrar na antiga residência
da família Brontë, hoje o Brontë Parsonage Museum, foi uma experiência
única que me fez entender e vivenciar ainda mais o mundo das irmãs.
De repente você entende o barulho do
vento e como ele pode ser um personagem na história. De repente você entende
como a tuberculose e a febre tem tanto espaço nos infortúnios de seus
personagens. De repente você entende porque o pároco é tão presente: essa foi a
vida delas, muito sofrida do nascimento até a morte precoce em todos os casos. E
de repente você se enche de orgulho e respeito pelas três irmãs que, contra a
natureza, a família, a saúde e a sociedade, conseguiram em tanto marcar a literatura.
Jane Eyre é atemporal e
até hoje um livro com resquícios feministas. É um livro para todas as idades e
com muitas camadas. É complexo em sua simplicidade. É viciante. É sofrido. É
lindo em sua dor. Assim como Haworth.