Sal - Letícia Wierzchowski

>>  quarta-feira, 2 de outubro de 2013

WIERZCHOWSKI, Letícia. Sal. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2013. 240p.

Como o tempo pode provocar tamanho estrago? Ando pela minha casa e já não a reconheço totalmente. Parece a casca vazia de alguma coisa. Percorro os corredores sem vida, silenciosos. O sal dos anos parece se acumular por sobre as coisas todas. Se me esforço um pouquinho, fechando os olhos – apoiada num sofá, num canto de parede, na estante com todos os livros que Flora resgatou do esquecimento lá no depósito-, posso ouvir alguma coisa. Como o som dos mortos, as suas vozes tênues, queixosas... Outra já teria procurado um médico, uma faca, um amante. Outra que não eu. Eu tento agarrar o tempo, tocar as fímbrias do tempo com os meus dedos. Tento transpor a barreira dos anos e reexperimentar esse riso, a limpidez de cascata desse riso que um dia passou por aqui.” p.123

Me apaixonei pela narrativa da autora quando li A casa das sete mulheres, e apesar de vários outros livros publicados, este foi meu segundo livro da Letícia Wierzchowski.  A sensação é de beleza, poesia, uma escrita para ser degustada. Sinto suas palavras como um vinho seco que deixa um gosto doce e amargo na boca... Sou péssima com analogias rs, enfim, hoje vou contar para vocês o que achei de Sal.

A pequena e isolada ilha de La Duiva expõe os marinheiros a duras ameaças em seus traiçoeiros rochedos. Vários já perderam a vida ali naquelas águas, mas a família Godoy cuida daquele faróis à gerações. O farol conhece aquelas pessoas, sabe das suas historias, das boas e das ruins.

Cecília Godoy tece na varanda a historia da família, conta como tudo começou, de quando eles eram muitos, de quando eram felizes. Ela com seu amado marido, Ivan, o azul da sua historia, da sua tapeçaria sem fim. No auge da sua solidão, ela tece, entrelaça sinas, escolhe uma cor para cada um. Ivan a deixou cedo demais, o coração o deixou na mão, como o seu pai antes dele e muitos outros homens da família. Ela se lembra de tudo, de quando ainda era uma mocinha trabalhando na casa depois que a mãe morreu, do negro Ernesto e seus livros, da Dona, a mãe de Ivan que odiou Cecília até depois da morte.

Ela a empregada da casa, uma mocinha nova e muito bonita. Ele o patrãozinho. Os dois juntos, nas dunas de La Duiva, se escondendo nas noites de verão. A descoberta inevitável, o casamento, o ódio eterno da sogra. Dona já morreu há muito, mas suas pragas ficaram entranhadas naquela casa. Em meio a alegria das crianças.

As crianças. Lucas, o mais velho. Aquele que Ivan confiava para seguir seus trilhos e cuidar do farol. Lucas que foi embora atrás de um rabo de saia. Julieta, que nunca viveu de verdade, presa em um corpo que não funcionava, ali, placidamente, em meio aos acontecimentos da casa. Eva e Flora, as gêmeas, como água e óleo, tão diferentes quanto poderiam ser. Flora com seus livros, com seu amor por escrever e sua vida solitária. Eva pura coragem, devassidão, energia. Com seus cabelos ruivos, seus lábios vermelhos, destruindo corações pela ilha. Orfeu o poeta, que adorava desenhar e vivia sonhando e olhando o mar. Orfeu que era diferente dos outros meninos, e ficou ainda mais diferente quando descobriu o prazer de amar. E Tiberius, o caçula, que chegou ao mundo quando Cecília não esperava mais ter filhos, que nasceu com um dom ou uma maldição, ele enxerga o futuro e teme pela família.

Quando Flora começa a escrever um romance, Tiberius avisa, que suas palavras eram tão poderosas que iriam se transportar para a realidade, avisa para que a irmã deixe aquilo de lado. Mas seu livro, já concluído, atravessa os oceanos, até chegar as mãos do inglês Julius Templeman. Um professor de literatura latino-americana que se encanta pela criação e decide deixar a Europa e visitar La Duiva. A chegada daquele forasteiro provoca mudanças profundas na vida dos moradores da ilha.

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Lendo a primeira parte da resenha, vocês podem ter a impressão que eu contei demais sobre o enredo, mas é esta a sensação que o leitor tem ao iniciar o livro. Não é uma leitura linear, muitos acontecimentos já estão claros desde o início. Alternam-se narradores, eles contam fatos do presente, do passado. Os capítulos muitas vezes são divididos por cores, e eu começava cada nova “cor” curiosa para descobrir quem estava narrando. É um recurso diferente que funcionou muito bem para mim.

Sal é um emaranhado de historias, como Cecília bem diz ao fazer aquela tecelagem sem fim. E a autora soube de forma magistral diferenciar muito bem cada uma das narrativas. Você reconhece a solidão de Cecília, a melancolia de Orfeu, a força de Eva e a mansidão de Flora. As emoções estão palpáveis, você sente a dor de Flora, o desespero da mãe, sofre pelo destino de alguns dos personagens.

São capítulos tão lindos que comovem pela simplicidade, eu queria mudar algumas passagens. Por vezes eu queria já não saber o que viria a seguir. Ah isso é uma das coisas que me fez não amar o livro, a narrativa adianta muitos dos desdobramentos. Não tem aquela emoção de você saber tudo o que vem a seguir, você já sabe que X vai ser dar mal, que Y vai morrer, etc. Eu não sou fã deste recurso literário, para mim, as vezes, era como se a própria autora tivesse me contando um spoiler hahaha.

Achei o final também um pouco abrupto, foi a segunda coisa que não gostei. Quando surgiu a possibilidade de contar um novo começo, pelo menos para um dos personagens, o livro termina sem mais detalhes. E eu queria mais... queria um sopro de esperança. 

Quem quiser conhecer melhor a historia antes de ler o livro, pode conhecer os personagens dessa obra belíssima em Sal, um prólogo, e-book gratuito que está disponível em várias lojas como Amazon, Saraiva, Siciliano, Kobo/Cultura e iTunes. Eu li o conto e tive a impressão que ele me contou mais do livro do que eu queria saber, mas esta sou eu, como eu disse, que não gosta de saber nada antes. ^^

Sal é uma leitura que exige um pouco mais, tanto por seu vocabulário, quanto pelas sutilezas nas entrelinhas da trama. É uma historia linda, forte, real. Não é um romance para qualquer leitor, mas é um romance fantástico para o leitor que está preparado para o livro. Letícia me surpreendeu mais uma vez, leitura recomendada!

Avaliação (1 a 5):

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